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ESPECIAL  BICENTENÁRIO



          imaginar  uma comunidade  nacional         A marca das classes dominantes do país é a
          de iguais. Ao contrário, reafirmou a       reafirmação do passado, a afirmação de mais do
          violência, o racismo, a dominação e
          a desigualdade do período anterior,        mesmo: dependência, dominação patriarcal, racial
          inaugurando um longo ciclo – que vai       e de classe, violência, desigualdade, autoritarismo.
          completar em breve dois séculos – de       Nesse contexto, cabe à esquerda, em particular à
          modernização conservadora que, pela
          burguesia local, mais conserva do que      esquerda socialista, a tarefa de alimentar e realizar
          moderniza.                                 os ideais mais básicos de país, em particular,
             Florestan Fernandes, em Revolução       os ideais de soberania nacional, de democracia
          Burguesa no Brasil , vai ser categórico
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          ao afirmar que, a depender da burgue-      política e democracia social
          sia brasileira, nosso destino nunca irá
          muito além desse horizonte tacanho,    sa mesma burguesia – restringe as pos-  social, ambiental, democrática, cultu-
          incapaz de realizar sequer o ideal bur-  sibilidades de ação da burguesia local.  ral – o horizonte se fecha e ressurgem,
          guês de uma nação soberana formada         É por tudo isso que, desde a Inde-  com força, dogmas e tabus já superados.
          por uma comunidade de cidadãos for-    pendência, a marca das classes domi-    Para muitos – em geral, socialmente
          malmente iguais, embora socialmente    nantes do país é a reafirmação do pas-  fragilizados – faz sentido imaginar até
          divididos em classes. É por isso, dirá   sado, a afirmação de mais do mesmo:   mesmo o inimaginável: que a terra é
          Florestan, que nem sequer o ideal de-  dependência, dominação patriarcal, ra-  plana.  Sinal dramático de que em um
          mocrático do povo a burguesia bra-     cial e de classe, violência, desigualdade,   horizonte de expectativas nublado pelo
          sileira, marcada pelo racismo e pelo   autoritarismo. Nesse contexto, cabe à   medo, crescem as distopias. Fala-se aber-
          elitismo, é capaz de aceitar; não sendo   esquerda, em particular à esquerda so-  tamente em apocalipse e o fim dos tem-
          por qualquer outra razão que o Brasil   cialista, a tarefa de alimentar e realizar   pos parece logo ali. É aqui que a tare-
          só  vai  instituir  o  voto  universal  em   os ideais mais básicos de país, em par-  fa da esquerda se mostra ainda maior.
          1989, cem anos depois da Proclamação   ticular, os ideais de soberania nacional,   Cabe a nós reivindicar uma perspectiva
          da República e quase dois séculos de-  de democracia política e democracia     de futuro aberta e otimista, mostrando
          pois da declaração de Independência,   social.                                 como é possível construir uma socieda-
          ocorrida na esteira das primeiras revo-    Mas o ponto central, e que define   de marcada pela igualdade real e pela
          luções democrático-burguesas.          o desafio particular da esquerda bra-   liberdade  plena.  Um  mundo  em  que
             Esse caráter profundamente con-     sileira, é que, no atual contexto histó-  ninguém precise morrer de fome ou
          servador da burguesia brasileira não   rico, quando  estamos  às  vésperas  de   de frio. Em que ninguém precise sofrer
          deve-se apenas à herança cultural da   comemorar o bicentenário de inde-       estigma pela cor da sua pele, pelo seu
          escravidão. Tem, como lembra Flo-      pendência, o tempo do mundo – ou o      gênero, pela sua classe social, pela sua
          restan Fernandes, raízes estruturais: o   horizonte de expectativas hegemônico   orientação sexual, pelas suas escolhas
          capitalismo dependente brasileiro – re-  – não é mais o otimismo da “primavera   culturais. Um mundo onde o inferno
          produzido é verdade, por escolhas des-  dos povos” na emergência do capitalis-  seja apenas uma invenção cultural e o
                                                 mo. Ao contrário, desde os anos 1970,   fim dos tempos tenha ficado definitiva-
          3  Florestan Fernandes, sociólogo brasileiro que com-
                                                 o capitalismo vive uma crise profunda,   mente para trás.
          pletaria 100 anos em 2020, foi professor da USP, cassa-
                                                 de caráter sistêmico, que tem revertido
          do pela ditadura e filiado ao Partido dos Trabalhadores,
          tendo sido, inclusive, deputado constituinte. É autor de   completamente a perspectiva de futuro    MARIA CARAMEZ CARLOTTO é
          uma das mais importantes interpretações sobre a inde-  socialmente compartilhada. Sob a égi-  cientista social, professora da UFABC e
          pendência brasileira, intitulada Revolução Burguesa no
                                                 de da crise sistêmica – crise econômica,   militante do PT
          Brasil, publicada originalmente em 1974.


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