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ESPECIAL BICENTENÁRIO 2022
1822
Parece abstrato, mas é fácil de en- bolo é a constatação empírica – cheia de As independências da América
tender quando pensamos que a Inde- consequências – de que a terra é redon- vão ocorrer nesse contexto, já sob o
pendência do Brasil ocorreu em um da. No fundo, não mais dogmas religio- marco das revoluções burguesas euro-
“tempo do mundo” marcado por um sos incontestáveis, mas conhecimentos peias, mas também sob a sombra da
horizonte de expectativa orientado abertos à contestação embasada por revolução popular e negra do Haiti
para o futuro e profundamente otimis- fatos; no horizonte, não mais abismos, de 1791. Não é exagero dizer que de
ta, que enterrava de vez a ordem feudal mas o sol de novos mundos. todas as independências americanas,
e abria caminho para a modernidade É, em grande medida, a consolida- a brasileira foi a mais conservadora.
capitalista. ção desse novo horizonte de expectati- Não só porque preservou mais do que
Essa grande transição entre o mun- vas – otimista e orientado para o futuro em outros lugares os laços de depen-
do feudal – também chamado por al- – que enquadra, historicamente, a “era dência com a Europa, encarnados na
guns de Idade Média – e o mundo capi- das revoluções” a partir do final do sé- monarquia, depois tornada império,
talista – que o pensamento burguês au- culo XVIII: revolução científica, revolu- dos Orleans e Bragança, mas porque
todenominou de modernidade – não ção industrial, revolução nacional, revo- conservou a essência da estrutura eco-
foi um raio em céu azul. Na verdade, lução democrático-burguesa, revolução nômica e social colonial, marcada pela
estendeu-se por alguns séculos, tendo socialista. Estava aberto um novo tem- grande propriedade, monocultora, ex-
nas grandes navegações e na “descober- po do mundo, não mais pautado no portadora e, sobretudo, escravocrata.
ta” da América um marco essencial. Por medo e na tradição, mas orientado, em Mesmo sob um horizonte de expecta-
contraste, o horizonte temporal da ex- última instância, pela certeza de que tivas aberto e inspirado por ideais de
periência social no contexto dos gran- seria possível construir, neste mundo – liberdade, igualdade e fraternidade,
des “descobrimentos” era orientado único –, uma sociedade com menos dor a oligarquia brasileira, depois trans-
para o passado e marcado pelo medo. e sofrimento para todos. mutada em burguesia, foi incapaz de
De fato, os dogmas da tradição cristã
medieval definiam uma experiência so-
cial pautada no medo: medo do fim dos
tempos, do juízo final, da condenação
divina, do inferno.
Nada ilustra melhor essa percepção
do que a própria iconografia medieval.
O predomínio de temas como o inferno
e o juízo final na arte medieval mostra
a força desse horizonte profundamen-
te negativo de expectativas, para o qual
“este mundo” era visto e vivido como
um lugar de sofrimento e provação o
paraíso estaria destinado para os pou-
cos que chegassem ao “outro mundo”.
Nesse contexto, torna-se compreen-
sível que a “descoberta” da América pe-
los europeus, por volta de 1500, tenha
tido um impacto tão profundo. Este
processo, aprofundou a transição cultu- Às esq., “Juízo Final”, quadro do pintor holandês Hieronymus Bosch datado de 1482; à dir., cartaz
de “Westworld”, série estadunidense de ficção científica que tem um caráter futurista distópico e
ral aberta pelo Renascimento, cujo sím- é inspirada em dois filmes da década de 1970, intitulados Westworld (1973) e Futureworld (1976)
90 ESQUERDA PETISTA #11 - Setembro 2020