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conseguido guardar em uma vida apertada, como o maior bem de um jornalista decente, de
um homem íntegro: credibilidade.
Mikael se assemelha muito ao perfil de Stieg Larsson. Como Mikael, o autor da obra foi um
dos jornalistas mais importantes da Suécia. Passou a vida denunciando os poderosos — e
mais do que todos, aqueles que eram extremistas de direita. Larsson denunciou várias
organizações fascistas e racistas enquanto viveu. Por sua luta pelos direitos humanos,
recebeu ameaças de morte. Como Mikael, ele mantinha uma pequena, independente e
combativa revista, a Expo. E foi ao subir os sete lances da escada do prédio da revista, porque
o elevador estava quebrado, que ele teve um enfarte e morreu, em novembro de 2004, aos
50 anos. Antes de lançar a trilogia que o tornaria famoso e milionário. Antes de terminar o
quarto livro da série — escrevera 200 das 600 páginas previstas. E antes de escrever os outros
seis — ele havia sonhado com dez volumes.
Stieg Larsson era como Mikael Blomkvist. Mas, talvez, como todas as pessoas que já viram
as tripas do poder legalmente instituído de perto e já foram vítimas dos burocratas que dele
se alimentam como os vermes que são, aspirasse a ser uma Lisbeth Salander. Acho que
Lisbeth Salander foi a vingança de Stieg Larsson. Depois de passar a vida denunciando a
podridão — e, veja bem, estamos falando da Suécia — e se ferrando por isso na vida real,
era preciso criar uma vingadora na ficção. Talvez fosse isso ou deixar de acreditar. E, para
alguém como Stieg Larsson, deixar de acreditar era morrer. Na ficção, Lisbeth Salander salva
Mikael Blomkvist. Me arrisco a pensar que, na vida real, ela também salva Stieg Larsson. E o
salvaria por completo, não fosse ele morrer cedo demais. Este, aliás, é sempre o problema
com a realidade.
Lisbeth Salander olha para Mikael Blomkvist com algo próximo da ternura. Não são muitos
os homens bons na sua vida. Ela o ajuda não por acreditar no que ele acredita, ela o ajuda
por acreditar nele. De certo modo, Lisbeth, apesar de sua juventude, é mais vivida e
experiente do que Mikael. Como os jovens do Occupy, ela acredita que as instituições estão
falidas, que a velha ordem ruiu e que não há como lutar dentro do sistema. Mas,
diferentemente deles, Lisbeth não acredita em quase ninguém e, portanto, desconfia das
massas. Para Lisbeth, a única saída possível é individual. Ela é um rato resistente,
sobrevivendo nos porões e roendo os alicerces da cidade, na mais absoluta solidão
existencial. Ela é uma hacker — e o único movimento coletivo possível é aquele onde os
indivíduos não sentem o cheiro da pele um do outro, cada um seguro na sua toca.
Esta é uma face importante de Lisbeth: a não face. Revela nossa época também pela
negativa da autoria. Não é esta, afinal, uma das grandes questões colocadas pela internet e
um dos grandes embates travados hoje em torno dos direitos autorais?
Enquanto há um movimento em que indivíduos fazem qualquer coisa, até comer baratas
ou se submeter a 50 cirurgias plásticas para se diferenciar, ter seus minutos de fama e