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ordem. Mas a internet surgiu, e com ela uma brecha para Lisbeth escapar e inventar sua
frágil resistência.
Lisbeth carrega em si todas as marcas do velho mundo — representado pelo Estado que
a condenou e ainda controla a sua vida. Estado esse que é encarnado por homens
“instituídos” que abusaram — e ainda abusam — de Lisbeth, com a justificativa pública, essa
também tão abusada ontem como hoje, do “é para o seu próprio bem”. Por trás deles e do
Estado a quem dão face, ocultam-se tanto as perversões individuais quanto os crimes do
poder estabelecido que devem permanecer escondidos, custe o que custar. E custa muito.
Para dar forma a essas marcas invisíveis, Lisbeth Salander tatua um dragão nas costas.
Como descobrimos no desenrolar da história, as expressões físicas das violências que
continuam infligindo em Lisbeth acabam sumindo, nos dias. O dragão permanece lá. O
dragão resiste, assim como os inúmeros piercings que a perfuram para lembrar que, em cada
um deles, foi ela que escolheu se flagelar. O dragão é a marca que Lisbeth escolheu para
representar a si mesma — não a que foi imposta a ela. O dragão é a reinvenção possível.
Nossa heroína não acredita em (quase) nada. Nem em (quase) ninguém. Ela não tem
ilusões: Lisbeth sabe que está sozinha. Lisbeth foi vítima tanto das utopias que moveram o
mundo no século 20 quanto do fim delas. Ela é, de fato, filha da Guerra Fria e dos arranjos
que vieram depois, como o leitor vai descobrir nos volumes seguintes. Mas é também filha
de si mesma, como tentam ser todos os que vivem nessa época.
Com uma profunda e justificada desconfiança dos homens — a começar pelo próprio pai
— e com uma profunda pena das mulheres — a começar pela própria mãe —, Lisbeth
Salander cria um homem e uma mulher, um nem homem nem mulher para si. Radical em
sua androginia, Lisbeth poderia ser definida como uma bissexual, não fosse essa uma
definição superada e que já não dá mais conta da complexidade da sexualidade humana.
Lisbeth, também sexualmente, só pode ser definida pela indefinição. Como o mundo que
prefere habitar, o da internet, nossa heroína é fluida e sem fronteiras.
No primeiro volume da série, os caminhos de Lisbeth Salander se cruzam com os de Mikael
Blomkvist. Quem é Mikael? Um jornalista que investiga e denuncia os poderosos. Um
jornalista que acredita em seus ideais, que sacrifica a vida pessoal pela missão de
documentar a História — e as histórias — do seu país. Um homem bom. Para isso, Mikael
criou, com dois sócios, a revista Millennium — uma publicação pequena, independente e
combativa. A princípio, parece que é o nome da revista que dá título à trilogia da série criada
por Stieg Larsson. Mas acredito que o Millennium de Larsson é algo mais profundo — é um
ser e estar neste milênio.
No momento em que Lisbeth e Mikael se encontram, ele acabara de perder uma ação na
justiça contra um dos homens poderosos — e corruptos — que denunciou. Com a
condenação, Mikael perdeu todo o seu patrimônio: não apenas o dinheiro que tinha