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Millennium. Do mesmo modo que morreu sem roçar nem a fama nem os milhões que dela
vieram, enfartou sem saber que tinha parido — ele, um homem — a primeira heroína do
século 21. Não a primeira porque a obra foi escrita no terceiro milênio, aí seria fácil. Mas a
primeira filha desse mundo fluido, sem fronteiras definidas tanto na geografia do planeta
como na do corpo dos indivíduos que o habitam. Esse mundo onde ditaduras caem com a
ajuda do Twitter e do Facebook. Esse mundo em que as formas são forjadas pela ausência
de formas da internet.
Se alguém me pedisse hoje uma indicação de como começar a compreender esse mundo
novo, que nos escapa a cada esquina — inclusive porque não tem esquinas —, eu indicaria
sem hesitar: conheça Lisbeth Salander. Mais do que qualquer obra acadêmica, ela nos
introduz nesse tempo sem tempo. Ou melhor, esfrega-o na nossa cara sem virar o rosto para
nos olhar. Como os grandes personagens da literatura, Lisbeth é síntese e antítese de uma
época. E um dia, talvez, Lisbeth Salander poderá ser tão universal quanto Hamlet. Mas o “ser
ou não ser” de Lisbeth se dá em outros termos — jamais como um dilema, mas como um
estar no mundo em si. Para Lisbeth, renascida na internet, “ser e não ser”, ao mesmo tempo,
é o único modo possível de existir. E esta é a sua força.
Volto a falar de Lisbeth Salander com a desculpa do filme em cartaz nos cinemas. Desta
vez, a versão de Hollywood do primeiro volume da série — Os homens que não amavam as
mulheres. Queria implicar com essa versão, que botou Daniel Craig, o último 007, a encarnar
o personagem do jornalista Mikael Blomkvist, mas não consegui. O roteiro é melhor do que
o do filme sueco, e David Fincher, o mesmo que fez o excelente Clube da luta e também A
rede social, é um diretor capaz de lidar com a violência sem escorregar nos clichês. Mas o
filme em cartaz é só uma desculpa para falar do lugar que Lisbeth Salander ocupa não apenas
no nosso coração, mas também no nosso fígado.
Se você não teve a chance de ler a trilogia Millennium, não se preocupe. Você é um
sortudo, invejado por ainda ter esse prazer à sua espera. Neste verão, Lisbeth Salander
capturou até mesmo meu pai, passado dos 80 anos, que até então era rígido em seus hábitos
de só ler livros acadêmicos, ensaios e clássicos em geral. De repente, meu pai se viu abduzido
por aquela estranha criatura, uma alienígena no seu mundo, mas dotada de uma
humanidade avassaladora. E o segundo volume, que não tinha sido levado para a casa de
praia, teve de ser providenciado às pressas. À heroína, então.
Lisbeth Salander é uma hacker. Não uma qualquer, mas uma das melhores. Seu passado
— e a pior parte do seu presente — é tudo aquilo que os jovens do movimento mundial
Occupy, que protestam contra o sistema financeiro internacional e as instituições que o
representam, denunciam que está podre e que não faz mais sentido. Mas as semelhanças,
como veremos, acabam aí. Se a internet não houvesse surgido, talvez Lisbeth estivesse
condenada a morrer numa clínica psiquiátrica, como tantos, tantas vezes, por obra da velha