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bondoso, mas também inteligente, autônomo e capaz de defender-se das ameaças vindas
        do mundo dos adultos. E não um tolinho choraminguento agarrado à barra da saia da mãe,

        exigindo um videogame de última geração.
          Há duas crenças perigosas em jogo quando se culpa a ficção pelas atrocidades reais. A
        primeira é a de que a fantasia poderia invadir a realidade de uma forma literal. É claro que a

        fantasia invade a realidade (e vice-versa), mas pelo simbólico. E é por sermos capazes de
        simbolizar  que  não  cometemos  atrocidades  na  vida  real.  A  segunda  crença  é  a  de  que

        aniquilar  os  “maus”  sentimentos  e  os  impulsos  sombrios  na  ficção  seria  suficiente  para
        eliminá-los na realidade. Como se negar o “mal” fosse o suficiente para fazê-lo desaparecer.
        Isso sim é confundir fantasia com realidade.

          Arrisco-me a supor que tem mais chance de se tornar um adulto pacífico aquela criança
        que  matou  e  morreu  muitas  vezes  nas  brincadeiras  de  infância  do  que  aquela  que  foi

        obrigada a reprimir todos os seus “maus” instintos na fabulação cotidiana. Como não é
        possível  eliminar  nossas  trevas  íntimas  por  decreto,  de  algum  modo  esse  caldeirão  vai
        transbordar, mais cedo do que tarde.

          De fato, as crianças acabam dando um jeito de sobreviver — também subjetivamente —
        às sandices dos adultos. Dias atrás, uma conversa no pátio do prédio de classe média de uma

        amiga nos chamou a atenção. “Agora, você é o traficante”, disse uma menina de mais ou
        menos dez anos para o companheiro da mesma idade. Ela, como explicou, seria a viciada em
        crack. Ficamos ali, na janela, ouvindo e imaginando o que aconteceria se os respectivos pais

        estivessem no nosso lugar.
          O que as crianças faziam era tentar lidar, pela brincadeira e pela fantasia, com as notícias

        que vinham do mundo real pelo noticiário e pelas conversas, já que o crack é a droga mais
        falada do momento no mundo que elas também habitam. Ao fabularem sobre o que as
        impactava, estavam fazendo algo bastante saudável. Mas seria muito provável que parte dos

        pais  e  professores  interpretasse  a  brincadeira  como  o  prenúncio  de  um  futuro  de
        delinquência ou drogadição. Ao reprimir o que era natural como se fosse um problema,

        confundindo, agora sim, fantasia com realidade, poderiam causar um problema de verdade.
            O que me parece arriscado não é quando a ficção espetaculariza a realidade. Essa é, com
              mais ou menos talento, uma das funções da ficção. O problema é quando a realidade é
                 tratada não como a realidade que é, mas como espetáculo. Isso, sim, banaliza a vida

                       humana. Temos convivido com a espetacularização da realidade em programas
              sensacionalistas travestidos de jornalísticos, em coberturas de ocupação de favelas nas

            quais repórteres e comentaristas comemoram a morte de supostos traficantes, como se
                                               suspeitos fossem culpados e culpados não fossem pessoas.
          A  espetacularização  da  realidade  acontece  sempre  que  a  imprensa,  responsável  por
        documentar a vida cotidiana de homens e mulheres reais, anula a história que faz cada um
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