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Não atirem no Coringa!













        Quando eu tinha oito anos, minha mãe fez uma oferta inédita. Ela tinha ganhado um dinheiro
        extra em algum trabalho como professora, talvez corrigindo redações de vestibular, e me
        levou a uma loja dizendo: “Escolha o que você quiser”. Fiquei extasiada. Na minha infância,

        ao contrário de hoje, se você pertencia a uma classe média remediada, só ganhava presentes
        no Natal e no aniversário — e eram limitados. Assim, a oferta da minha mãe equivalia à

        abertura da caverna de Ali Babá de repente, sem aviso e num dia de semana. Olhei para um
        lado, olhei para o outro, e fui atraída por um objeto reluzente, a réplica exata de um revólver
        calibre 38, tão fiel que muitas vezes depois seria confundido com um de verdade. “Quero o

        revólver”, eu disse, para espanto geral da minha mãe, da vendedora da loja e, depois, do
        restante da família. Você não quer uma boneca? “Não, eu quero o revólver.”

          Eu não era estranha às armas de mentira. Passara os últimos anos matando ou sendo
        morta pelo meu irmão do meio, assim como pelos amigos. Morria ora como cowboy, ora
        como índio. Por influência ideológica do nosso pai, lá em casa os índios tinham seus dias de

        glória ao vencer a cavalaria americana. Mas também fui assassinada pelo martelo do Thor,
        asfixiada pela teia do Homem Aranha e trespassada pela espada do Zorro. Morri dezenas,

        talvez centenas de vezes, antes de completar dez anos. E liderei massacres quando ainda era
        menor de idade. Alguns dos melhores momentos da minha infância foram vividos quando
        matava ou morria alegremente nas brincadeiras, ressuscitando a tempo de comer o bolinho

        de chuva da minha mãe.
          Mas nunca matei um único passarinho real na minha infância, numa época na qual isso era

        comum. Aprendi a pegar os insetos que se arriscavam pela casa pelas asas ou pelas patas e
        devolvê-los ao lado de fora sem lhes causar danos, exceto baratas e pernilongos. No dia em
        que matei um filhote de barata, porém, fiquei tão culpada que tentei imortalizá-lo numa

        pobre  novela  escrita  num  daqueles  cadernos  de  recordações  com  uma  capa  vermelho-
        brilhante. Jamais tive ou teria uma arma de verdade, inclusive porque jamais conseguiria

        usá-la. Votei pela proibição do comércio de armas de fogo e munição no plebiscito de 2005.
        E, como jornalista, dediquei uma parte significativa da minha vida a denunciar a violência
        contra os mais fracos e os invisíveis. O que não me impede de ainda hoje explodir cabeças

        no videogame sempre que possível.
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