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Na capa do livro de Sapphire, uma professora do Harlem em cuja obra se baseou o filme,
        há uma frase perfeita: “Você testemunha o nascimento de uma alma”. É exatamente isso. O

        filme é o caminho de Preciosa a partir do momento em que se vê refletida nos olhos da
        professora que a ensina a ler. Olhos dispostos a enxergar uma alma onde a maioria só via
        banha, violência e miséria.

          Ao percorrermos com ela esse percurso, vivemos momentos muito duros. Mas é também
        imensamente  redentor.  No  momento  em  que  Preciosa  descobre  que  há  outras  versões

        possíveis para a sua vida — e que ela mesma pode construir narrativas melhores —, o mundo
        que é ela se amplia. E com essa experiência, também o mundo que somos nós é ampliado.
        Ao sair do cinema, percebi que estava maior.

          Preciosa nos evoca o perigo da história única. Até não encontrar um olhar acolhedor onde
        se reconhecer, ela só se reconhecia no não olhar de sua mãe. A escola que frequentara até

        então continuava olhando para ela sem ver, o que a manteve analfabeta por anos. Só quando
        encontrou uma narrativa alternativa para si mesma, Preciosa teve alguma chance de ter não
        só uma vida, mas também uma alma.

          Este é também o tema da palestra de Chimamanda Adichie. Essa escritora de 32 anos
        pertencia a uma espécie de classe média da Nigéria, filha de um professor universitário e de

        uma secretária. Em sua palestra no TED (Ideas Worth Spreading), ela conta uma história feita
        de embates narrativos para mostrar como a história única aniquila a vida.
          Linda e bem-humorada, Chimamanda mostra como a redução das histórias fez mal a sua

        maneira de olhar a vida de outros em seu próprio país. E fez mal à forma como outros
        olharam para a sua vida quando se mudou para os Estados Unidos — e sua colega de quarto

        só conseguia enxergá-la a partir dos estereótipos ligados a um “país” chamado África. Nessa
        narrativa, Chimamanda percorre as várias crenças sobre a África — e não deixa de mostrar
        como ela mesma embarcou na tentação das versões hegemônicas, como quando fez uma

        viagem ao México e descobriu, ao andar pelas ruas de Guadalajara no primeiro dia, que tinha
        chegado até ali acreditando que imigrante era tudo o que um mexicano era.

          É  pela  intuição  do  enorme  poder  de  transformação  das  histórias  contadas  que
        Chimamanda se transforma numa escritora. E também Preciosa. A professora faz mais do
        que ensiná-la a ler. Todos os dias, Preciosa precisa escrever um diário. Ao contar sua vida,

        literalmente nas páginas do caderno, ela descobre que é mais do que lhe haviam contado
        até então. Mais complexa e multidimensional.
          Ao escrever sobre sua vida com papel e caneta, Preciosa descobre que pode reescrever

        sua vida na concretude das ruas. E é o que faz. Agora, ela pode se reconhecer nos olhos de
        outros. Ela gosta da imagem que vê. E nós, na poltrona do cinema, incomodados no início

        com toda a coleção de estereótipos que ela representa, também gostamos do que passamos
        a enxergar.
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