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Numa reportagem que fiz em 2007, sobre a primeira geração de escritores das periferias
do Brasil, especialmente de São Paulo, mostro os dados de uma pesquisa de Regina
Dalcastagnè, professora da Universidade de Brasília (UnB). Ao analisar os romances
brasileiros, entre 1990 e 2004, ela revela que 94% dos autores e 84% dos protagonistas são
brancos — e apenas 24% dos personagens são pobres. Ou seja, a história contada pela nossa
literatura mostra um mundo de gente branca e de classe média.
É ruim? Não exatamente. É limitado. Não há nenhum problema em escrever e ler livros
com protagonistas brancos e de classe média. Brancos de classe média fazem parte da
sociedade brasileira. E era só o que nos faltava ter de fazer uma literatura politicamente
correta. O problema não é o que existe, mas o que não existe, o que não está lá. O perigoso
é não existirem livros com outras cores e realidades, com diferentes autores e personagens.
A grande novidade também no Brasil, que é a razão da reportagem citada, é que hoje vem
se ampliando também a pluralidade das vozes na literatura. Com a entrada de novos
protagonistas no cenário das letras, nós, leitores, temos acesso a novas maneiras de ver o
mundo e de estar no mundo. E a diversidade sempre faz bem para a vida, tanto a subjetiva
quanto a concreta.
Chimamanda conta como fazia mal a ela não fazer parte da literatura, como personagem,
já que os livros disponíveis na Nigéria de sua infância eram os escritos pelos colonizadores
britânicos. Os personagens dos livros que lia gastavam boa parte dos dias falando sobre o
tempo: “Será que vai fazer sol amanhã?”. Fazia todo o sentido para um britânico, mas era
estranhíssimo para uma menina nigeriana, na medida em que não era apenas um dos
mundos ao qual tinha acesso através dos livros, mas toda a literatura disponível.
Ao mesmo tempo, quando ela se torna escritora, é cobrada por seus romances não serem
suficientemente “africanos”. Como se ela só pudesse existir como narradora de uma
determinada maneira, como se só pudesse contar uma única história. Como se um escritor
do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, por exemplo, só pudesse escrever sobre a
violência e só pudesse escrever usando gírias. A arte é o território da liberdade. E da
reinvenção. Nela, podemos qualquer coisa. Até sermos nós mesmos.
Quando Preciosa, no filme, escapa de sua vida impossível para divagações em que é
glamourosa, desejada e talentosa, descobrimos por que ela ainda está viva. É pela fantasia
que ela mantém a salvo a melhor parte de si mesma. A parte incorruptível de si mesma.
Como faz a maioria de nós, mesmo sem ter uma realidade tão perversa como Preciosa.
Lembro que só suportei minha inadequação, na infância, porque ficava inventando
enredos na minha cabeça, nos quais tinha papel de protagonista. Quando era obrigada a
interagir com as crianças da minha idade, só suportava ouvir aquelas conversas, em que não
encontrava pontos de conexão, porque podia escapar pela fantasia. Me sentia um ET no
mundo real, mas era uma heroína em meu próprio mundo. Ter a possibilidade de “me