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contar” em minha literatura íntima, assim como para Preciosa, em outras proporções, me
assegurou a sanidade. Até hoje, quando a vida fica muito doída e nem consigo entender o
que falam ao meu redor, mergulho em narrativas inventadas — e nem por isso menos
verdadeiras.
O perigo da história única, mais fácil de analisar na geopolítica do mundo, começa dentro
de casa, na família. Como no caso de Preciosa. Quando nascemos, é o olhar da mãe o
primeiro a nos constituir. Só nos reconhecemos como um ser para além da mãe a partir desse
primeiro olhar fundador. Na infância, é no primeiro mundo privado que habitamos, o de
dentro da casa, que iniciamos nosso embate com as histórias únicas. Quando os pais
determinam que este filho é inteligente, aquele é preguiçoso e um terceiro é malvado, o
mais provável é que aqueles filhos assim rotulados cumpram a profecia dos pais. Por isso, é
comum ouvirmos: “Fulano desde pequeno já era assim...”. Claro, como poderia ser
diferente?
A versão dos pais sobre nós é a primeira versão narrativa da vida de cada um. E ela nos
marca para sempre. Para o bem — e para o mal. Seja pela displicência, seja pela opressão.
Quando é para o mal, se torna uma prisão. Não somos o que podemos vir a ser, mas um
estereótipo fechado, vendido como a única verdade sobre nós mesmos. Este é o olhar que
nos transforma em pedra. Afinal, as ovelhas negras de cada família são ou tornaram-se?
Se não encontramos alguém que rompa as grades desse olhar na escola, nosso primeiro
mundo público, temos poucas chances na vida. Se, ao contrário de ampliar as versões
narrativas, o professor cimentar ainda mais os rótulos familiares ou criar outros tão
perniciosos quanto — com sentenças como “este é inteligente”, “aquele é burro”, “o outro
é violento”, “aquele não tem jeito”, “este é um caso perdido” —, as chances minguam.
A história única na família e na escola é o ato mais covarde cometido por pais e professores
que não sabem o que fazem — ou sabem, mas não conseguem ou não querem fazer
diferente. Educar é ampliar as possibilidades narrativas da vida de cada um — e da vida dos
outros.
De certo modo, crescer é tornar-se capaz de quebrar a sucessão de histórias únicas sobre a
nossa existência. Foi o que aconteceu com Preciosa, a partir do olhar libertador da
professora.
Se você estiver atolado na vida porque lhe fizeram acreditar em uma única versão, reaja.
Não acredite. Exercite a dúvida sobre si mesmo — e sobre o outro. Será que é assim mesmo?
Será que isso é tudo o que sou? Será que é só isso que posso ser? Tornar-se adulto é ter a
coragem de se contar como alguém múltiplo e contraditório, um habitante do território das
possibilidades.