Page 82 - Os Manuscritos do Mar Morto
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A linguagem guerreira adotada na segunda parte do hino (vv. 51-54) utiliza o
conceito de pobreza (humildade), um tanto comum ao judaísmo Antigo e fortemente
destacado em Qumran. Lohfink, ao analisar como se dispõe a idéia da pobreza dentro do
Magnificat, conclui que o hino
não é de forma alguma um elogio da pequenez, da modéstia, da existência
na obscuridade. Pelo contrário, é a mensagem de um Deus que faz justiça
aos prejudicados deste mundo e exclui aqueles que se apropriam de partes
demasiadas deste mundo (2001:19).
Segundo este ponto de vista, sentenças como “dispersou os homens de coração
orgulhoso” (v. 51) e “depôs poderosos de seus tronos” (v. 52), colocam-se como uma
mensagem para o tempo presente e não para uma expectativa do porvir ou algo
parecido, mas “isso totalmente aqui nesse mundo” (LOHFINK, 2001:20). Esse
conteúdo “subversivo” reflete o ambiente palestino do século I com todos os seus
problemas de ordem social e dominação estrangeira do período. Neste contexto, dá-se o
nascimento e desenvolvimento do gênero literário apocalíptico, que acaba assumindo o
papel de literatura de resistência. Esta foi uma das formas encontradas para lutar contra
o imperialismo político e militar imposto por potências estrangeiras. Utilizando uma
linguagem simbólica cuja compreensão é restrita a um número seleto de pessoas,
autores pseudônimos relatavam fatos conturbados de seus dias por meio de metáforas,
que tinham por objetivo se contraporem à opressão de um governo estrangeiro sobre o
judaísmo. No AT, o melhor exemplo é o livro de Daniel, escrito provavelmente em
meados do século II a.C., período que corresponde à forte influência selêucida e à luta
dos Macabeus para rechaçá-la. No NT encontramos este gênero representado no livro de
Apocalipse, escrito durante um contexto que possui uma realidade semelhante, mas
contando com um opressor diferente, Roma. Em Qumran, parecia haver um consenso de
que se estava vivendo os “últimos dias”, fato que motivava uma interpretação
apocalíptica do tempo presente. 58
No caso do Benedictus, cântico atribuído por Lucas a Zacarias que
aparentemente retrata as expectativas futuras sobre João, encontram-se várias
semelhanças com o Magnificat. Há dúvidas a respeito de sua composição e origem,
mesmo assim, inclui elementos que permitem compreender melhor as relações entre
grupos do período. É o que se nota já na introdução do hino. A expressão “bendito seja
58 O gênero apocalíptico era bem conhecido por Qumran. Entre os livros deste estilo descobertos,
destacam-se 4Q246, 4QPsDa, 4Q521 e 6Q14.