Page 77 - Os Manuscritos do Mar Morto
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havia a necessidade de uma vigilância estrita da Lei, o que acabava gerando seu auto-
isolamento da sociedade judaica e de seus problemas seculares.
Os MQ mostram que a teologia da comunidade passou por uma grande evolução
teológica desde sua fundação. Podemos afirmar que até a formação do judaísmo
rabínico, a evolução teológica saducéia e farisaica é de longe inferior à dos essênios,
tendo como base a documentação que chegou até nós. 54
Admitindo-se que saduceus e fariseus foram mais ativos na sociedade nos
aspectos seculares, e que o essenismo se destacou com uma teologia mais elaborada,
mais ampla e inovadora, poderíamos nos questionar sobre qual desses grupos poderia
fornecer maior número de influências a movimentos religiosos nascentes, sobretudo
para o cristianismo. Sem dúvida, o controle secular era ditado majoritariamente pelos
saduceus e fariseus, principalmente pelo primeiro grupo, devido à sua ligação política
com Roma e anteriormente com os selêucidas da Síria. O essenismo por sua vez,
afastava-se conscientemente destas questões, mas ao mesmo tempo procurava dar uma
resposta para esse tipo de situação.
Problemas sociais enfrentados pela população judaica recebiam uma resposta
teológica por parte dos essênios. Um exemplo é o emprego do termo kittim encontrado
em 1QpHab. O nome é derivado do grego Kition, cidade antiga da ilha de Chipre (atual
Larnaca). Encontramos o termo utilizado em alguns versículos bíblicos representando
povos diferentes. Em Gn 10:4 o termo é aplicado aos descendentes do grego Javã. Em Jr
2:10 designa os povos do Mediterrâneo ocidental e em Dn 11:30 parece representar os
romanos (outros textos são 1Cr 1:7; Is 23:1; Nm 24:24). Para os “comentadores” de
Qumran essa representação teve uma grande importância. Na composição de sua
doutrina escatológica, os kittim se posicionam ao lado dos “filhos das trevas” na guerra
final – algo que não acontece em citações do AT.
Essa característica, de responder a situações seculares conturbadas pelo viés
religioso, existia tanto no essenismo quanto no cristianismo. O comentário sobre Jesus
em Mt 11:28 demonstra bem isso. Ele disse que deviam vir a ele os que estavam
“cansados sob o peso do vosso fardo”, com a preocupação de trazer alívio para estes
que viviam “como ovelhas sem pastor” (Mt 9:36), pessoas provavelmente
desamparadas pelo aparelho governamental daqueles dias. Esse é um dos exemplos que
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Um exemplo disso é o do desenvolvimento da escatologia qumrânica que se caracteriza pela descrição
da relação entre os “filhos da Luz” e dos “filhos das trevas”. Enquanto de início a proposta era sectária,
com o passar do tempo parece ter dado um passo mais humanista em favor da coabitação pacífica pelos
dois grupos até que o “fim” não chegasse (cf. FLUSSER, 2000:163).