Page 75 - Os Manuscritos do Mar Morto
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                    3. AS RELAÇÕES ENTRE OS HINOS DE QUMRAN E OS HINOS

                                            DO NOVO TESTAMENTO




                         Como  pudemos  perceber  no  capítulo  anterior,  a  literatura  hinária  era
                  amplamente utilizada e valorizada no período do Segundo Templo. Encontram-se textos

                  hinários em diferentes espaços geográficos, estratos sociais e grupos étnicos e sectários,
                  com muitos elementos em comum.


                         Sem a intensificação dos estudos bíblicos multidisciplinares ocorrida nas últimas
                  décadas, ficaria difícil reconstruir a Judéia entre os séculos II a.C. a I d.C., com seus

                  conflitos  de  variadas  ordens,  imposições,  resistências  e  “trocas  simbólicas”.  Sabendo
                  que  esse  período  era marcado  por  uma  mistura  muito  grande  de  elementos  diversos,

                  podemos nos perguntar: era o ambiente religioso passível dessa circularidade existente

                  na  sociedade?  Será  que  os  acontecimentos  em  outros  segmentos  da  sociedade
                  implicavam, por mínimo que seja, no ambiente religioso?

                         O trânsito de indivíduos entre comunidades religiosas era constante, sobretudo
                  no século I d.C. Estas comunidades abrigavam pessoas de culturas, línguas e etnicidades

                  diferentes, e vinham a assumir uma forma particular de representação somente depois
                  de muito tempo. Esse foi o caso do cristianismo se pensado até Constantino. Antes dele,

                  a heterogeneidade existente era muito grande.

                         É  com  este  cristianismo  inicial,  pouco  ortodoxo,  que  queremos  traçar
                  comparações com um corpus de fonte anterior, ou seja, com os MQ. As fontes cristãs,

                  canônicas  ou  não-canônicas,  possuem  origens  diversas,  um  fato  que  começa  a  ser
                  perdido  de  vista  com  a  “constantinização”  do  cristianismo.  Ao  invés  de  se  pensar  o

                  movimento  partindo  de  sua  heterogeneidade,  essa  visão  traz  a  idéia  equivocada  de

                  univocidade do movimento, impedindo que se vislumbre a realidade de seu período de
                  formação. Segundo Pablo Richard,



                                          Existe  uma  falsa  imagem  da  origem  do  cristianismo  como  movimento
                                          único,  com  uma  só  estrutura  institucional  e  corpo  doutrinal,  onde  a
                                          diversidade teria vindo depois. Existiria uma unidade ortodoxa primitiva e
                                          uma dispersão posterior com múltiplas heresias. Identifica-se unidade com
                                          ortodoxia  e  diversidade  com  heresia.  Tudo  isto  é  contrário  à  realidade
                                          histórica (1995:8, n. 22, grifo meu).


                         Segundo este mesmo autor, o inteiro cânon do NT é composto de uma coletânea
                  de textos de tendências cristãs diversas. Jerusalém, Galiléia, Samaria e Síria foram as
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