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vez que não foi justamente dado em auxilio aos seres mais desafortunados,
       mais delicados e mais efêmeros senão para mantê-los por um minuto em
       sua existência; é o intelecto, esse excesso, sem o qual teriam todas as
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       probabilidades de se salvar tão depressa como o filho de Lessing . Esse
       orgulho ligado ao conhecer e ao sentir, venda nebulosa atada aos olhos e
       aos sentidos dos homens, ilude-os quanto ao valor da existência, emitindo
       ele próprio sobre o conhecer a mais lisonjeira apreciação. Seu efeito mais
       geral é a ilusão, mas também os efeitos mais particulares trazem em si
       alguma coisa do mesmo caráter.


              Enquanto é meio de conservação para o indivíduo, o intelecto
       desenvolve suas forças principais na dissimulação; essa é, com efeito, o
       meio pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, subsistem como
       aqueles a quem é recusado encetar uma luta pela existência com chifres ou
       com a mandíbula aguçada de um predador. No homem, essa arte da
       dissimulação atinge seu auge: a ilusão, a lisonja, a mentira e o engano, as
       intrigas, os ares de importância, o falso brilho, o uso da máscara, o véu da
       convenção, a comédia para os outros e para si próprio, em resumo, o circo
       perpétuo da lisonja por uma chamazinha de vaidade, essas são de tal forma
       a regra e a lei que quase nada é mais inconcebível que o evento de um
       honesto e puro instinto de verdade entre os homens. Estão profundamente
       mergulhados nas ilusões e nos sonhos, seus olhos só deslizam pelas
       superfícies das coisas, vendo nelas "formas", sua sensação não conduz em
       parte alguma à verdade, mas se contenta somente em receber excitações e
       tocar como sobre um teclado nas costas das coisas.

              Além disso, durante uma vida, o homem se deixa à noite enganar
       no sonho sem que seu sentido moral procure alguma vez impedido disso:
       quando deve haver homens que, pela força de vontade, suprimiram o
       ronco.

              Para dizer a verdade, que sabe o homem de si próprio? E poderia
       mesmo se perceber integralmente tal como é, como se estivesse exposto
       numa vitrina iluminada? A natureza não lhe haverá de esconder a maioria
       das coisas, mesmo sobre seu corpo, a fim de mantê-lo afastado das dobras
       de seus intestinos, da corrente rápida de seu sangue, das vibrações
       complexas de suas fibras, numa consciência orgulhosa e quimérica? Ela


              42  Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), escritor, dramaturgo e critico alemão, autor também de
              dramas de cunho filosófico (NT).
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