Page 246 - As Viagens de Gulliver
P. 246
interrogaria sobre o que se passou no seu tempo e que podia estar bem certo de
que me falariam sempre verdade, pois é inútil aos mortos mentir.
Rendi humildes ações de graças a sua alteza e, para me aproveitar dos
seus oferecimentos, pus-me a recordar o que em outros tempos lera na história
romana. Primeiro, acudiu-me ao espírito a idéia de pedir para ver a famosa
Lucrécia, que Tarquínio violou e que, não podendo sobreviver a essa afronta, se
suicidara. Logo vi diante de mim uma dama muito formosa, vestida à romana.
Tomei a liberdade de perguntar-lhe por que vingara em si própria o crime de
outrem; baixou os olhos e respondeu que os historiadores, com receio de a darem
por fraca, a haviam enlouquecido; em seguida, desapareceu.
O governador fez sinal para que aparecessem César e Bruto. Fiquei
atônito de admiração e de respeito à vista de Bruto, e César confessou-me que
todas as suas belas ações tinham ficado abaixo da de Bruto, que lhe tirara a vida
para livrar Roma da sua tirania.
Tive vontade de ver Homero; apareceu-me; conversei com ele e
perguntei-lhe o que pensava acerca da sua Ilíada. Declarou-me que ficara
surpreendido com os excessivos louvores que lhe teciam havia três mil anos; que
o seu poema era medíocre e eivado de tolices; que não tinha agradado no seu
tempo senão por causa da beleza da sua dicção e da harmonia dos seus versos, e
que ficara assombrado porque, visto a sua língua estar morta, e ninguém lhe
conhecer as belezas, o espírito e as finuras, achava ainda pessoas ocas ou muito
estúpidas, que o admiravam. Sófocles e Eurípedes, que o acompanhavam,
tiveram pouco mais ou menos a mesma opinião e troçaram principalmente dos
nossos sábios modernos que, obrigados a reconhecer os disparates das antigas
tragédias, quando eram fielmente traduzidas, sustentavam, no entanto, que em
grego é que se encontravam as belezas e era preciso saber esse idioma para
julgar com segurança.
Quis ver Aristóteles e Descartes. O primeiro confessou-me que nada
ouvira de física senão aos filósofos seus contemporâneos, e todos aqueles que
tinham vivido entre ele e Descartes; acrescentou que tomara por bom caminho,
ainda que fosse muitas vezes enganado, principalmente pelo seu extravagante
sistema com respeito à alma dos animais. Descartes tomou a palavra e disse que
tinha encontrado alguma coisa e soubera estabelecer muito bons princípios,
porém que não tinha ido muito longe, e que todos aqueles que doravante
quisessem percorrer o mesmo trilho, seriam sempre retidos pela fraqueza do seu
espírito e obrigados a tatear; que era uma grande loucura passar a vida a
procurar sistemas e que a verdadeira física conveniente e útil ao homem era
fazer um amontoado de experiências e de se limitar a isso; que tivera por