Page 251 - As Viagens de Gulliver
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desejo de ir ao Japão, onde sabia que só os holandeses são recebidos. Disse, pois,
      ao comissário que naufragara na costa dos Balnibarbos e, tendo chocado com um
      rochedo, estivera na ilha volante de Lapúcia, de que muitas vezes ouvira falar e
      que  desejava  agora  dirigir-me  ao  Japão,  a  fim  de  voltar  daí  ao  meu  país.  O
      comissário disse-me que era obrigado a prender-me até que recebesse ordens da
      corte, para onde ia escrever imediatamente e de onde contava receber resposta
      dentro  em  quinze  dias.  Deram-me  um  alojamento  razoável  e  puseram-me
      sentinela à porta. Tinha um grande jardim, por onde podia passear, e fui muito
      bem  tratado,  à  custa  do  rei.  Muitas  pessoas  vieram  visitar-me,  excitadas  pela
      curiosidade  de  ver  um  homem  que  vinha  de  um  país  muito  afastado,  do  qual
      nunca tinham ouvido falar.
          Tratei  com  um  rapaz  do  nosso  navio  para  me  servir  de  intérprete.  Era
      natural  de  Luggnagg;  mas,  vivendo  há  largos  anos  em  Maldonada,  sabia
      perfeitamente  as  duas  línguas.  Com  o  seu  auxílio,  fiquei  em  condições  de
      conversar  com  todos  os  que  me  dessem  a  honra  de  vir  visitar-me,  isto  é,  de
      entender as suas perguntas e eles entenderem as minhas respostas.
          A resposta da corte veio ao fim de quinze dias, como se esperava; trazia
      uma ordem para ser conduzido com a minha comitiva por um destacamento de
      cavalaria  a  Traldragenv  ou  Trildragdrib,  porque,  se  não  estou  em  erro,  se
      pronuncia das duas maneiras. Toda a minha comitiva consistia nesse pobre rapaz,
      que  me  servia  de  intérprete  e  que  tomara  para  meu  serviço.  Fizeram  partir
      adiante de nós um correio, que nos avançou meio dia, para avisar o rei da minha
      próxima chegada e para pedir a Sua Majestade marcasse o dia e hora em que
      poderia ter a honra e prazer de lamber a poeira dos pés do trono.
          Dois dias depois da minha chegada tive audiência. Primeiro fizeram-me
      deitar e arrastar sobre a barriga e limpar o sobrado com a minha língua à medida
      que  adiantava  para  o  trono  do  rei;  mas,  porque  era  estrangeiro,  tiveram  a
      bondade de limpar o sobrado, de maneira que a poeira não podia prejudicar-me.
      Era  uma  graça  especial,  que  não  se  concedia  mesmo  às  pessoas  de  primeira
      categoria,  quando  tinham  a  honra  de  ser  recebidas  na  audiência  de  Sua
      Majestade;  algumas  vezes  até  se  deixava  de  propósito  o  sobrado  muito  sujo  e
      coberto de poeira, quando os que vinham à audiência tinham inimigos na corte.
      Uma vez vi um fidalgo ter a boca tão cheia de pó e tão suja do que apanhara
      com a língua, que, quando chegou ao trono, lhe fora impossível articular uma
      única  palavra.  Para  essa  fatalidade  não  há  remédio,  porque  é  proibido,  sob
      graves penas, escarrar ou limpar a boca na presença do rei. Existe mesmo, nessa
      corte, um outro uso, que não posso aprovar: quando o rei pretende matar algum
      fidalgo  ou  algum  cortesão  de  maneira  que  o  não  desonre,  faz  lançar  sobre  o
      sobrado um determinado pó cinzento, que está envenenado e não deixa de fazê-lo
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