Page 262 - As Viagens de Gulliver
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por bem, por bondade, condescender à minha fraqueza e singularidade, contanto
que eu guardasse todas as conveniências para salvar as aparências; disse-me que
daria ordem aos oficiais encarregados de fazer observar este uso para que me
deixassem passar, fazendo de conta que não haviam reparado em mim.
Acrescentou que era de interesse meu calar-me sobre o caso, porque
infalivelmente os holandeses, meus compatriotas, me apunhalariam na viagem
se viessem a saber a dispensa que obtivera e o injurioso escrúpulo que tivera em
imitá-los.
Dei os meus mais humildes agradecimentos a Sua Majestade por este
singular favor, e, assim que algumas tropas estavam prontas para marchar para
Nangasac, o oficial teve ordem para me conduzir a essa cidade, com instruções
secretas acerca do crucifixo.
Aos nove dias do mês de Junho de 1709, após uma longa e penosa
viagem, arribei a Nangasac, onde encontrei uma companhia de holandeses que
tinha partido de Amsterdam para negociar em Amboina e que estava pronta para
embarcar, no seu regresso, num grande navio de quatrocentas e cinqüenta
toneladas. Permanecera muito tempo na Holanda, pois fizera os meus estudos
em Leyde e falava muito bem a língua desse país. Dirigiram-me diversas
perguntas acerca das minhas viagens, a que respondi conforme me aprouve.
Mantive perfeitamente, perante eles, a linha de holandês; citei amigos e parentes
nas Províncias-Unidas e apresentei-me como natural de Gelderland.
Estava disposto a dar ao capitão do navio, que era um certo Theodoro
Vangrult, tudo quanto lhe apetecesse pedir-me pela minha passagem; sabendo,
porém, que eu era cirurgião, contentou-se com metade do preço vulgar, com a
condição de que exerceria a bordo o meu mister.
Antes de embarcarmos, alguns da tropa tinham-me perguntado
amiudadamente se eu traficara, ao que eu respondi, de um modo geral, que
fizera tudo quanto era necessário. Contudo, um patife audacioso lembrou-se de
mostrar-me maldosamente ao oficial japonês, dizendo: não calcou aos pés o
crucifixo. O oficial, que tinha secretas ordens para nada exigir de mim, aplicou-
lhe vinte bastonadas dadas nas costas, de maneira que mais ninguém se atreveu,
após essa cena, a fazer-me perguntas sobre tal assunto.
Na nossa viagem nada houve que mereça ser referido. Fizemo-nos de
vela, com vento de feição, e tomámos água no Cabo da Boa Esperança em 16 de
Abril de 1710; desembarcámos em Amsterdam, onde me demorei pouco tempo
e onde depressa embarquei para a Inglaterra. Que prazer não foi o meu ao tornar
a ver a minha querida pátria, após cinco anos e meio de ausência! Encaminhei-