Page 257 - As Viagens de Gulliver
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mil anos. Que espetáculo nobre e encantador não seria ver com os seus próprios
olhos as decadências e as revoluções dos impérios, a face da terra renovada, as
cidades soberbas transformadas em cidades burguesas ou tristemente
amortalhadas nas suas vergonhosas ruínas; as aldeias obscuras tornadas a
habitação dos reis e dos seus cortesãos; os rios célebres transformados em
pequenos regatos; o oceano banhando outras praias; novas regiões descobertas;
um mundo desconhecido, saindo, por assim dizer, do caos; a barbárie e a
ignorância espalhadas pelas nações mais delicadas e mais esclarecidas; a
imaginação extinguindo o juízo; o juízo gelando a imaginação; o amor pelos
sistemas, pelos paradoxos, pelo empolado, pelas subtilezas e antíteses, sufocando
a razão e o bom gosto; a verdade oprimida hoje e triunfante amanhã; os
perseguidos tornados perseguidores e os perseguidores, perseguidos por sua vez;
os soberbos, abatidos, e os humildes, glorificados; os escravos, os libertos, os
mercenários, conseguindo uma fortuna imensa com a administração dos fundos
públicos, com as desgraças, fome, sede, nudez e sangue dos povos; enfim, a
posteridade desses salteadores públicos reduzida ao nada, de onde a rapina e a
injustiça os haviam tirado! Como, nesta situação de imortalidade, a idéia da
morte nunca estaria presente no espírito para me perturbar ou para arrefecer os
meus desejos, entregar-me-ia a todos os prazeres sensíveis de que a natureza e o
raciocínio me permitissem o uso. Contudo, as ciências seriam sempre o meu
primeiro e mais querido cuidado; suponho que, à força de meditar, encontraria
por fim as longitudes, a quadratura do círculo, o moto perpétuo, a pedra filosofal
e a panacéia universal; que, numa palavra, levaria todas as ciências e todas as
artes à sua última perfeição.
Logo que findei a minha prédica, o único que tinha compreendido voltou-
se para a assembléia e fez dela um extrato na linguagem do país; depois de o
ouvir, puseram-se a raciocinar juntos durante certo tempo, sem que, no entanto,
testemunhassem, ao menos pelos seus gestos e atitudes, desprezo algum pelo que
acabava de dizer. Por fim, todos, de comum acordo, pediram por favor e
caridade à mesma pessoa que resumira o meu discurso, que me abrisse os olhos
e me emendasse os erros.
Disse-me primeiramente que não era o único estrangeiro que olhava com
espanto e com inveja a situação dos struldbruggs; que encontrara nos Balnibarbos
e nos Japoneses pouco mais ou menos as mesmas exposições; que o desejo de
viver era natural do homem; que aquele que tinha um pé para a cova, se
esforçava por se manter firme no outro; que o velho mais corcovado imaginava
sempre um amanhã e um futuro e apenas encarava a morte como um mal
longínquo e fugidio; mas, na ilha de Luggnagg se pensava de um modo bem
diferente, e que o exemplo familiar e a contínua presença dos struldbruggs
haviam preservado os habitantes desse insensato amor pela vida.