Page 266 - As Viagens de Gulliver
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desamarraram-me,  contentando-se  em  me  acorrentar  em  pé  à  cabeceira  da
      cama e em postarem uma sentinela à porta do meu camarote, com ordem de
      me fazer saltar os miolos se fizesse alguma tentativa de fuga. O seu projeto era
      fazer pirataria com o meu navio e dar caça aos espanhóis; para isso, porém, não
      eram muitos os tripulantes; resolveram, primeiramente, vender a carga do navio
      e  ir  a  Madagascar  para  aumentar  a  sua  gente.  Entretanto,  conservavam-me
      prisioneiro  a  bordo  do  meu  camarote,  muito  inquieto  com  a  sorte  que  me
      esperava.
          A  9  de  Maio  de  1711,  um  tal  Jacques  Welch  entrou  e  disse-me  que
      recebera  ordem  do  senhor  capitão  para  me  desembarcar.  Quis,  mas
      baldadamente, conversar com ele e dirigir-lhe algumas perguntas; recusou até
      dizer-me o nome daquele a quem tratava por senhor capitão. Fizeram-me descer
      para o escaler, depois de me haverem permitido arranjar o meu fardo e levar as
      minhas  coisas.  Deixaram-me  o  meu  sabre  e  tiveram  a  delicadeza  de  não  me
      revistar  as  algibeiras,  onde  havia  algum  dinheiro.  Após  quase  uma  légua  de
      navegação,  deixaram-me  numa  praia.  Perguntei  aos  que  me  acompanhavam
      que região era aquela.
          — Por nossa fé — responderam — sabemos tanto como o senhor, mas
      tome cuidado, não vá a maré surpreendê-lo. Adeus.
          Em seguida o escaler afastou-se.
          Abandonei a praia e subi a um outeiro para me sentar e deliberar sobre o
      caminho que tinha a tomar. Quando me senti um pouco descansado, avancei por
      esses terrenos, resolvido a aproveitar-me do primeiro meio de salvação que se
      me oferecesse e resgatar a minha vida, se pudesse, por algumas sementes, por
      alguns braceletes e outras bagatelas, de que os viajantes não deixam de munir-se
      e de que tinha uma certa quantidade nas algibeiras.
          Descortinei  grandes  árvores,  vastas  campinas  e  campos,  onde  a  aveia
      crescia  por  todos  os  lados.  Caminhava  com  precaução,  receando  ser
      surpreendido ou receber alguma flechada. Depois de ter andado algum tempo,
      fui sair em uma estrada, onde se me depararam muitas pegadas de cavalos e
      algumas vacas. Vi, ao mesmo tempo, grande número de animais no campo e um
      ou dois da mesma espécie empoleirados numa árvore. A sua figura surpreendeu-
      me  e,  tendo-se  aproximado  alguns,  ocultei-me  por  detrás  de  um  maciço  para
      melhor os examinar.
          Cabelos compridos lhes caíam para a cara; o peito, as costas e as patas
      dianteiras eram cobertas de um espesso pêlo; tinham barba no queixo como os
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