Page 270 - As Viagens de Gulliver
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CAPÍTULO II
O autor é levado à habitação de um huyhnhnm; como é recebido — Qual era o
alimento dos huyhnhnms — Embaraços do autor para encontrar com que se
alimentar.
D epois de ter palmilhado quase três milhas, chegámos a um sítio onde havia
uma grande casa de madeira muito baixa e coberta de palha. Comecei logo a
tirar da algibeira as pequenas lembranças, que destinava aos donos desta casa,
para ser nela recebido mais bondosamente. O cavalo teve a delicadeza de me
fazer entrar, primeiro, numa grande quadra muito limpa, onde, como único
mobiliário, havia uma mangedoura e uma gamela.
Vi três cavalos com duas éguas, que não comiam, e que estavam sentados
nos jarretes. Entretanto, o ruço-malhado chegou, e, entrando, começou a
relinchar em tom de dono da casa. Atravessei com ele duas outras salas planas;
na última, o guia fez-me sinal para esperar e passou a outro aposento que ficava
próximo. Imaginei, então, de mim para mim, que era preciso que o dono da casa
fosse uma pessoa nobre, pois assim me fazia esperar em cerimônia na
antecâmara. Ao mesmo tempo, porém, não podia conceber que um homem de
distinção tivesse um cavalo como criado de quarto. Temi, então, estar doido, e
que as minhas fatalidades me tivessem feito perder completamente a
inteligência. Olhei atentamente em volta de mim e pus-me a examinar a
antecâmara que estava pouco mais ou menos mobilada como a primeira sala.
Abri muito os olhos, fitei fixamente tudo o que me cercava e via sempre a
mesma coisa. Belisquei os braços, mordi os lábios, bati nos quadris para acordar,
no caso em que estivesse sonhando e, como eram sempre os mesmos objetos
que me feriam a vista, depreendi que havia ali obra do diabo e alta magia.