Page 273 - As Viagens de Gulliver
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Quando acabou o jantar, o cavalo, meu amo, chamou-me em particular
      e, por meio de sinais acompanhados de algumas palavras, fez-me compreender
      o  pesar  que  sentia  por  ver  que  eu  não  comia,  não  achando  coisa  alguma  que
      fosse do meu agrado. Hlunnh, na sua linguagem, queria dizer aveia. Pronunciei
      esta palavra duas ou três vezes, porque, embora a princípio tivesse recusado a
      aveia,  depois  de  haver  refletido  julguei  poder  fazer  dela  uma  espécie  de
      alimento,  misturando-a  com  leite.  Isso  me  sustentaria  até  que  se  me
      proporcionasse  ensejo  propício  para  me  escapar  e  encontrasse  indivíduos  da
      minha  espécie.  Logo  o  cavalo  deu  ordem  a  uma  criada,  que  era  uma  bonita
      égua, para que trouxesse uma boa porção de aveia em um prato de madeira. Fiz
      torrar  esta  aveia,  consoante  me  foi  possível;  em  seguida,  esfreguei-a  até  que
      ficasse completamente descascada, depois tratei de a padejar e coloquei-a sobre
      duas pedras para a esmagar: arranjei água, e fiz dela uma espécie de bolo que
      cozi e que comi quente, misturado em leite.
          A princípio, foi para mim uma iguaria muito insípida (embora seja um
      alimento  muito  usado  em  alguns  pontos  da  Europa);  mas,  habituei-me  com  o
      tempo  e,  tendo-me  encontrado  bastantes  vezes  na  minha  vida  reduzido  a
      circunstâncias  difíceis,  não  era  a  primeira  vez  que  percebia  que  pouco  era
      preciso  para  contentar  as  necessidades  da  natureza  e  que  o  corpo  a  tudo  se
      habitua. Observarei aqui que, enquanto permaneci no país dos cavalos, não sofri
      a menor indisposição. Verdade é que, algumas vezes, ia à caça dos coelhos e das
      aves, que apanhava com armadilhas feitas de cabelos dos Yahus;  outras  vezes,
      colhia ervas, que fazia cozer, ou que comia como salada, e, de vez em quando,
      fabricava manteiga. O que a princípio me causava desgosto era a falta de sal;
      acostumei-me,  porém,  a  passar  sem  ele;  daqui  depreendo  que  o  uso  do  sal  é
      efeito da nossa intemperança e apenas foi produzido para excitar a beber, porque
      é bom que se note que o homem é o único animal que tempera com sal tudo o
      que come. Quanto a mim, ao deixar este país, tive certo custo em tornar a usá-lo.
          Creio que já falei bastante a respeito do meu sustento. Se me alongasse
      muito mais sobre esse assunto, parece-me que faria o que fez, nas suas relações,
      a maioria dos viajantes, que imagina coisa de grande valia para o leitor saber se
      tem bom ou mau passadio.
          Seja como for, suponho que este sucinto pormenor da minha alimentação
      era necessário para impedir que se imaginasse que me foi impossível alimentar-
      me durante três anos de permanência em tal país e com semelhantes habitantes.
          À tarde, o cavalo, meu amo, mandou-me dar um quarto a seis passos da
      casa e separado do alojamento dos Yahus. Estendi alguns fardos de palha e cobri-
      me com o meu casaco, de maneira que passei uma noite magnífica, dormindo
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