Page 271 - As Viagens de Gulliver
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Enquanto ia fazendo estas reflexões, o ruço-malhado veio ter comigo e
      fez-me sinal para que entrasse com ele no aposento, onde vi sobre uma esteira
      muito  asseada  e  fina  uma  bonita  égua  com  um  potro  e  uma  eguazinha,  todos
      apoiados simplesmente nas suas ancas. A égua levantou-se à minha chegada e,
      depois de ter-me examinado atentamente as mãos e o rosto, voltou-me o rabo
      com ar desdenhoso e pôs-se a rinchar, pronunciando muitas vezes a palavra Yahu.
      Compreendi  logo,  com  grande  pesar  meu,  o  sentido  funesto  daquela  palavra,
      porque o cavalo que me introduzira, fazendo-me sinal com a cabeça e repetindo
      a palavra hhuum, hhuum, conduziu-me a uma espécie de pátio onde havia uma
      outra construção, a alguma distância da casa. A primeira coisa que me saltou à
      vista foram três daqueles malditos animais, que, a princípio, tinha visto no campo
      e de que mais acima fiz menção; estavam presos pelo pescoço e comiam raízes
      e carne de burro, de cão e de vaca morta (como depois soube), que seguravam
      nas garras e dilaceravam com os dentes.
          O cavalo-mor mandou então a um cavalinho alazão, que era um dos seus
      lacaios, que desprendesse o maior desses animais e o trouxesse. Colocaram-nos a
      ambos  de  costas  para  melhor  fazer  a  comparação  e  foi  então  que  o  Yahu  foi
      repetido  muitas  vezes,  o  que  me  deu  a  entender  que  aqueles  animais  se
      chamavam  Yahus.  Não  posso  descrever  a  minha  surpresa  e  o  meu  horror,
      quando, tendo examinado de perto esse animal, notei nele todas as feições e toda
      a configuração de um homem, com a diferença de que tinha uma cara larga e
      chata, o nariz esborrachado, os lábios grossos e a boca muito grande; isto, porém,
      é vulgar a todas as nações selvagens, porque as mães parem os filhos com o rosto
      voltado  para  o  chão,  levam-nos  às  costas  e  eles  batem-lhes  com  o  nariz  nas
      espáduas.  Este  Yahu  tinha  as  patas  dianteiras  parecidas  com  as  minhas  mãos,
      embora fossem munidas de unhas muito grandes e a pele fosse trigueira, rude e
      coberta de pêlo. As pernas também se pareciam com as minhas, com algumas
      diferenças. No entanto, as minhas meias e os meus sapatos tinham feito acreditar
      aos senhores cavalos que a diferença era muito maior. Com respeito ao resto do
      corpo, era de fato a mesma coisa, exceto com relação à cor e ao pêlo.
          Ainda  que  assim  fosse,  aqueles  senhores  imaginavam  que  a  minha
      vestimenta era a minha pele, e, por conseguinte, parte integrante do meu ser, de
      maneira que, por essa circunstância, era muito diferente dos seus Yahus. O lacaio
      alazão, apanhando uma raiz com o casco e a ranilha, veio trazer-ma. Peguei-lhe
      e,  tendo-a  saboreado,  restituí-lha  imediatamente  com  a  máxima  delicadeza
      possível. Em seguida, foi à moradia dos Yahus e trouxe-me um bocado de carne
      de burro. Este petisco pareceu-me tão detestável e tão desagradável que nem lhe
      toquei,  indicando,  ao  mesmo  tempo,  que  me  fazia  mal  ao  coração.  O  alazão
      atirou-o ao Yahu, que imediatamente o devorou com prazer. Vendo que o sustento
      dos Yahus me não agradava, lembrou-se de me oferecer do seu, isto é, feno e
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