Page 272 - As Viagens de Gulliver
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aveia; abanei, porém, a cabeça, fiz-lhe compreender que não era iguaria de que
      gostasse.  Então,  levando  uma  das  patas  dianteiras  à  boca,  de  um  modo  muito
      surpreendente  e  contudo  muito  natural,  fez-me  sinais  para  me  fazer
      compreender que não sabia como sustentar-me e para me perguntar o que eu
      queria comer; porém não pude fazer-lhe entender o meu pensamento por sinais,
      embora o entendesse, pois não via que ele se encontrasse em condições de poder
      satisfazer-me.
          Entretanto, passou uma vaca, apontei-a com o dedo e dei a entender, por
      um  aceno  expressivo,  que  tinha  vontade  de  mungi-la.  Compreenderam-me  e
      logo me fizeram entrar em casa, onde deram ordem a uma criada, isto é, à égua,
      de me abrir uma sala, onde encontrei uma grande quantidade de vasilhas de leite,
      alinhadas muito em ordem. Bebi dele abundantemente e tomei a minha refeição
      muito à vontade e com grande coragem.
          À hora do meio-dia vi chegar à casa uma espécie de carruagem, puxada
      por quatro Yahus.  Nessa  carruagem  um  velho  cavalo,  que  parecia  pertencer  a
      elevada  hierarquia,  vinha  visitar  os  meus  hospedeiros  e  jantar  com  eles.
      Receberam-no  muito  delicadamente  e  com  grandes  considerações,  jantaram
      juntos  na  melhor  sala  e,  além  do  feno  e  da  palha  que  lhe  apresentaram
      primeiramente, serviram-lhe aveia fervida em leite. A gamela em que comiam,
      colocada  ao  centro  da  sala,  estava  disposta  em  círculo,  pouco  mais  ou  menos
      como uma prensa de lagar na Normandia, e dividida em vários compartimentos,
      em volta dos quais se colocaram sentados sobre as ancas e encostados a fardos
      de  palha.  A  cada  compartimento  competia  uma  grade  de  manjedoura,  de
      maneira  que  cada  cavalo  e  cada  égua  comia  a  sua  ração  com  muito  mais
      decência e limpeza. O potro e a eguazinha, filhos dos donos da casa, assistiam a
      esse jantar, e parecia que os seus progenitores estavam muito atentos em fazê-los
      comer. O ruço-malhado ordenou-me que fosse para junto dele e pareceu referir-
      se a mim durante largo tempo ao seu amigo, que de vez em quando me fitava,
      repetindo por várias vezes a palavra Yahu.
          Alguns  momentos  antes  eu  calçara  as  luvas;  o  ruço-malhado,  tendo
      notado isso, e não vendo as minhas mãos conforme as havia visto a princípio, fez
      diversos sinais de admiração e de enleio; tocou-me três vezes com a sua pata e
      deu-me  a  entender  que  desejava  que  voltasse  à  primitiva  forma.  Em  seguida
      descalcei-me, o que fez falar toda a sociedade, à qual inspirei afeição. Depressa
      lhe senti os efeitos; aplicaram-se em fazer-me pronunciar algumas palavras que
      ouvia  e  ensinaram-me  os  nomes  de  aveia,  leite,  fogo,  água  e  muitas  outras
      coisas. Decorei todos esses nomes e foi, então, mais do que nunca, que fiz uso
      dessa prodigiosa facilidade que a natureza me concedeu para aprender línguas.
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