Page 277 - As Viagens de Gulliver
P. 277

mulher, os senhores seus filhos, o potro e a eguazinha, e todos os seus criados, a
      concorrer com zelo a aperfeiçoarem-me na língua, e ele próprio, todos os dias,
      consagrava para esse fim duas a três horas.
          Muitos  cavalos  e  éguas  de  distinção  vieram,  então,  visitar  meu  amo,
      excitados pela curiosidade de ver um extraordinário Yahu, que, pelo que tinham
      ouvido, falava como huyhnhnm e fazia brilhar, com as suas maneiras, as chispas
      do seu raciocínio. Sentiam prazer em dirigir-me perguntas ao meu alcance, às
      quais redarguia conforme podia. Tudo isto contribuía para me fortalecer no uso
      da língua, de sorte que, ao cabo de cinco meses, compreendia tudo o que me
      diziam e exprimia-me muito bem sobre a mor parte das coisas.
          Alguns  huyhnhnms,  que  vinham  à  casa  de  meu  amo  para  me  ver  e
      conversar comigo, não queriam acreditar que eu fosse um Yahu, porque, diziam,
      tinha  uma  pele  muito  diferente  da  daqueles  animais;  não  me  viam,
      acrescentavam, uma pele aproximadamente parecida com a dos Yahus senão no
      rosto e nas patas dianteiras, porém peladas. Meu amo sabia bem o que isso era,
      porque  uma  coisa  que  aconteceu  uns  quinze  dias  antes  tinha-me  obrigado  a
      descobrir-lhe esse mistério, que ocultara sempre até então com receio de que me
      tomasse por um verdadeiro Yahu e me pusesse na companhia deles.
          Já disse ao leitor que todas as noites, quando toda a casa estava recolhida,
      o meu costume era despir-me e cobrir-me com o casaco. Certo dia, meu amo
      mandou-me, de madrugada, o seu lacaio alazão. Quando entrou no meu quarto,
      dormia  eu  profundamente;  o  meu  casaco  estava  caído  e  tinha  a  camisa
      arregaçada. Acordei com o barulho que ele fez e notei que dava conta do recado
      com  ar  inquieto  e  embaraçado.  Foi  logo  ter  com  o  amo  e  contou-lhe
      confusamente o que vira. Quando me levantei fui dar os bons dias a sua honra (é
      o termo usado entre os huyhnhnms, que corresponde aos nossos: alteza, grandeza
      e  reverência)  .  Perguntou-me  logo  o  que  havia,  o  que  o  seu  lacaio  lhe  tinha
      contado  de  manhã;  que  lhe  dissera  que  não  era  o  mesmo  acordado  que
      dormindo; que, quando dormia, tinha uma pele que não possuía durante o dia.
          Tinha, até essa data, ocultado esse segredo, como já disse, para não ser
      confundido  com  a  maldita  e  infame  raça  dos  Yahus;  mas,  então,  foi  preciso
      desvendá-lo,  contra  minha  vontade.  Além  disso,  o  meu  vestuário  e  o  meu
      calçado estavam já muito usados, e como precisavam de ser substituídos pela
      pele de um Yahu, ou de qualquer outro animal, eu previa que o meu segredo não
      ficaria por muito tempo oculto. Confiei a meu amo que, no país de onde eu vinha,
      os da minha espécie costumavam cobrir o corpo com o pêlo de certos animais,
      preparado  com  arte,  quer  por  decência  e  comodidade,  quer  para  se  precaver
      contra o rigor das estações; que, pelo que me dizia respeito, estava pronto a fazer-
   272   273   274   275   276   277   278   279   280   281   282