Page 279 - As Viagens de Gulliver
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Todos  os  dias,  quando  estava  com  ele,  além  do  trabalho  que  tinha  em
      ensinar-me a língua, dirigia-me mil perguntas a meu respeito, às quais respondia
      o  melhor  que  me  era  possível,  o  que  lhe  dava  já  algumas  idéias  gerais  e
      imperfeitas do que devia dizer-lhe pormenorizadamente mais tarde. Seria inútil
      explicar  aqui  como  consegui  travar  com  ele  uma  conversação  longa,  séria  e
      seguida; direi apenas que a primeira conversa teve lugar da forma que passo a
      expor:
          Disse a sua honra que vinha de um país muito afastado, como já tinha
      tentado  fazer-lhe  compreender,  acompanhado  de  quase  cinqüenta  meus
      semelhantes; que num navio, isto é, uma construção feita de pranchas, tínhamos
      atravessado o mar. Descrevi-lhe a forma desse navio o melhor que pude e, tendo
      desdobrado o lenço, fiz-lhe compreender como o vento, que inchava as velas, nos
      fazia caminhar. Disse-lhe que, por ocasião de uma discussão levantada entre nós,
      tinha sido desembarcado nas costas da ilha em que atualmente me encontrava;
      que ficara a princípio muito embaraçado, não sabendo onde estava, até que sua
      honra tivera a bondade de me livrar da perseguição dos vis Yahus.
          Perguntou-me,  então,  quem  tinha  construído  o  tal  navio,  e  como  os
      huyhnhnms  do  meu  país  o  haviam  confiado  ao  governo  de  uns  animais
      irracionais. Retorqui que era impossível responder à sua pergunta e continuar a
      minha narrativa se não me desse a sua palavra, e se não me prometesse sobre
      sua honra e sobre a sua consciência, que não se ofenderia com tudo o que lhe
      dissesse;  que,  sob  esta  única  condição,  prosseguiria  a  minha  narrativa,  e  lhe
      exporia com sinceridade as maravilhosas coisas que lhe prometera contar.
          Assegurou-me, positivamente, que não se ofenderia com coisa alguma.
      Então,  disse-lhe  que  o  navio  fora  construído  por  criaturas  parecidas  comigo  e
      que,  no  meu  país  e  em  todas  as  partes  do  mundo  por  onde  viajava,  eram  os
      únicos animais senhores e denominados racionais; que, ao chegar àquela região,
      ficara  extremamente  surpreendido  por  ver  os  huyhnhnms  procederem  como
      pessoas dotadas de raciocínio, do mesmo modo que ele e os seus amigos estavam
      muito admirados de encontrar provas desse raciocínio numa criatura a quem lhes
      aprouvera tratar por Yahu, e que de fato se parecia com esses vis animais pela
      sua configuração exterior, e não pelas suas qualidades de alma. Acrescentei que,
      se algum dia o céu permitisse que voltasse ao meu país e publicasse a relação das
      minhas viagens, e em especial a minha permanência entre os huyhnhnms, toda a
      gente acreditaria que eu diria uma coisa que não era, e que seria uma história
      fabulosa  e  impertinente  que  eu  tinha  inventado;  em  suma,  apesar  de  todo  o
      respeito  que  ele  me  merecia,  e  toda  a  sua  honrada  família,  e  todos  os  seus
      amigos,  ousava  afirmar-lhe  que  no  meu  país  ninguém  acreditaria  que  um
      huyhnhnm fosse um animal racional e que um Yahu fosse um animal irracional.
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