Page 282 - As Viagens de Gulliver
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estado e emprego. Respondi-lhe que tínhamos grande quantidade; que, no verão,
      pastavam nas campinas e que, durante o inverno, ficavam em suas casas, onde
      tinham  Yahus  para  os  servir,  para  lhes  pentear  a  crina,  para  lhes  escovar  e
      esfregar a pele, para lhes lavar os pés, para lhes dar de comer.
          —  Compreendo,  —  retorquiu  ele  —  isto  é,  que,  embora  os  Yahus  se
      gabem de possuir algum raciocínio, os huyhnhnms são  sempre  os  amos,  como
      aqui. Prouvesse aos céus apenas que os nossos Yahus fossem tão submissos e tão
      bons criados como os do seu país! Mas prossiga, rogo-lhe.
          Pedi a sua honra quisesse dispensar-me de dizer mais sobre este assunto,
      porque não podia, segundo as regras da prudência, da decência e da delicadeza,
      explicar-lhe o resto.
          — Quero saber tudo — tornou. — Continue e não receie desgostar-me.
          —  Pois  bem!  —  disse-lhe  eu  —  Visto  que  o  quer  em  absoluto,  vou
      obedecer-lhe. Os huyhnhnms, a que nós damos o nome de cavalos, são, entre nós,
      os  mais  belos  e  mais  soberbos  animais,  igualmente  vigorosos  e  leves  para
      corridas. Quando vivem em casas de pessoas de distinção, fazem-lhes passar o
      tempo a viajar, a correr, a puxar carruagens e têm por eles todas as espécies de
      atenção  e  amizade,  enquanto  são  novos  e  se  portam  bem;  mas,  assim  que
      começam  a  envelhecer  ou  a  sofrer  das  pernas,  desfazem-se  deles  logo  e
      vendem-nos aos Yahus, que os empregam em trabalhos rudes, penosos, baixos e
      vergonhosos,  até  que  morram.  Então,  esfolam-nos,  vendem-lhes  as  peles,  e
      abandonam os seus cadáveres às aves de rapina, aos cães e aos lobos, que os
      devoram. Tal é, no meu país, o fim dos mais belos e dos mais nobres huyhnhnms.
      Mas nem todos são bem tratados e felizes, como aqueles que acabo de citar; há
      os que habitam, nos seus primeiros anos, em casa dos lavradores, carroceiros,
      cocheiros  e  outros  que  tais,  onde  são  obrigados  a  trabalhar,  ainda  que  mal
      tratados e mal alimentados.
          Descrevi, então, a nossa maneira de viajar a cavalo e a equipagem de um
      cavaleiro.  Pintei  o  melhor  possível  o  freio,  a  sela,  as  esporas,  o  chicote,  sem
      esquecer todos os arreios dos cavalos que puxam uma carruagem, uma carroça
      ou uma charrua. Acrescentei que se aplicava à extremidade dos pés de todos os
      nossos huyhnhnms  uma  chapa  de  certa  substância  muito  dura  chamada  ferro,
      para lhes conservar o casco e impedi-lo de partir-se nos caminhos pedregosos.
          Meu amo pareceu indignado com esta maneira brutal por que tratamos os
      huyhnhnms,  no  nosso  país.  Disse-me  que  estava  muito  admirado  de  que
      tivéssemos a ousadia e a insolência de lhes subir para a garupa; que, se o mais
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