Page 278 - As Viagens de Gulliver
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lhe ver claramente o que acabava de dizer; que me ia despir e que só ocultaria o
      que  a  natureza  nos  inibe  de  mostrar.  O  meu  discurso  pareceu  admirá-lo;  não
      podia, principalmente, conceber que a natureza nos obrigasse a ocultar o que nos
      deu.
          —  A  natureza  —  dizia  ele  —  fez-nos  presentes  vergonhosos,  furtivos  e
      criminosos? Quanto a nós — acrescentou — não coramos com esses dotes e não
      nos envergonhamos de os expor às claras. No entanto — prosseguiu — não quero
      contrariá-lo.
          Despi-me, pois, decentemente, para satisfazer à curiosidade de sua honra,
      que deu grandes mostras de admiração ao ver a configuração de todas as partes
      decentes do corpo. Levantou o meu vestuário, peça por peça, tomando-o entre o
      casco  e  a  ranilha  e  examinou-o  atentamente;  gabou-me,  acariciou-me  e  deu
      várias  voltas  em  torno  de  mim;  em  seguida,  disse  com  gravidade  que  era
      evidentemente um Yahu, e que não diferia de todos os da minha espécie senão
      por ter a carne menos dura e mais branca, com uma pele mais macia; que não
      tinha  pêlo  na  maior  parte  do  corpo;  que  tinha  garras  mais  curtas  e  de
      configuração  um  pouco  diferente,  e  que  afetava  andar  apenas  com  as  patas
      traseiras. Não quis ver mais e deixou-me vestir, o que me causou prazer pois já
      começava a sentir frio.
          Demonstrei a sua honra quanto me mortificava que me desse seriamente
      o  nome  de  um  animal  infame  e  odioso.  Supliquei-lhe  que  me  poupasse  uma
      denominação tão ignominiosa e que recomendasse a mesma coisa a sua família,
      aos  seus  criados  e  a  todos  os  seus  amigos;  foi  em  vão.  Pedi-lhe,  ao  mesmo
      tempo, a bondade de não dar parte do meu segredo, que lhe confiara, a pessoa
      alguma,  com  relação  ao  meu  vestuário,  ao  menos  enquanto  não  tivesse
      necessidade de mudá-lo, e que, com respeito ao seu lacaio alazão, sua honra lhe
      ordenasse que não desse palavra sobre o que vira.
          Prometeu guardar silêncio e o caso permaneceu secreto até que minha
      roupa  ficasse  imprestável  e  me  fosse  preciso  procurar  com  que  me  vestisse,
      como direi mais tarde. Ao mesmo tempo exortou-me a que me aperfeiçoasse
      ainda  na  língua,  porque  ficara  muito  mais  admirado  de  me  ouvir  falar  e
      raciocinar, do que me ver branco e pelado, e que tinha uma extrema vontade de
      saber de mim as coisas admiráveis que eu tinha prometido explicar-lhe. Desde
      então, teve mais empenho em instruir-me. Ia com ele, sempre que saía, e fazia
      com  que  eu  fosse  tratado  bondosamente  em  toda  parte  e  com  todas  as
      considerações,  a  fim  de  estar  sempre  de  boa  disposição  (como  me  disse
      particularmente) e de me tornar mais agradável e mais alegre.
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