Page 276 - As Viagens de Gulliver
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delicadeza, a minha docilidade, a minha disposição para aprender, admiravam-
      no:  não  podia  ligar  essas  qualidades  com  as  de  um  Yahu,  que  é  um  animal
      grosseiro,  sujo  e  indócil.  O  meu  vestuário  causava-lhe  também  embaraço,
      imaginando que fazia parte integrante do meu corpo, pois não me despia senão à
      noite para me deitar, quando todos na casa estavam ferrados no sono, e me vestia
      de manhã ao levantar, antes de acordarem. Meu amo tinha vontade de saber qual
      era  o  meu  país,  onde  e  como  adquirira  esta  espécie  de  raciocínio,  que
      transparecia de todas as minhas maneiras e, enfim, de conhecer a minha história.
      Gabava-me  de  ter  aprendido  tudo  isso,  rapidamente,  visto  o  progresso  que  eu
      fazia dia a dia na compreensão e na pronúncia da língua. Para auxiliar um pouco
      a minha memória, formei um alfabeto com todas as palavras que aprendera, e
      escrevia-as com o termo correspondente em inglês por baixo. Depois, não tive
      dificuldade em escrever na presença de meu mestre as palavras e frases que
      aprendia; não podia, contudo, compreender o que eu fazia, porque os huyhnhnms
      não faziam idéia alguma do que seja escrita.
          Enfim,  ao  cabo  de  dez  semanas,  encontrei-me  em  estado  de  entender
      diversas vezes as suas perguntas, e três meses depois fiquei bastante habilitado
      para lhes responder regularmente. Uma das primeiras perguntas que me dirigiu,
      quando lhe pareceu que eu estava em condições de responder-lhe, foi indagar de
      que país eu vinha e como aprendera a fazer-me animal racional, não passando
      de um Yahu, porque os Yahus, com os quais ele me encontrava semelhanças no
      rosto  e  nas  patas  dianteiras,  tinham,  dizia  ele,  uma  espécie  de  conhecimentos,
      com astúcias e malícias, porém não tinham esta concepção e esta docilidade que
      notava em mim. Respondi-lhe que vinha de muito longe e tinha atravessado os
      mares  com  outros  da  minha  espécie;  que  viajara  numa  grande  construção  de
      madeira; que os meus companheiros me haviam deixado nas costas deste país,
      abandonando-me. Foi-me preciso, então, juntar à linguagem muitos sinais para
      me fazer compreender. Meu amo replicou-me que era certo que me enganava e
      que tinha dito uma coisa que não era, isto é, mentia. (Os huyhnhnms não possuem
      na  sua  língua  vocábulos  para  exprimir  a  verdade  ou  a  mentira).  Não  podia
      compreender que houvesse terras de além-mar e que um vil rebanho de animais
      pudesse fazer flutuar sobre esse elemento uma grande construção de madeira e
      conduzi-la à sua vontade. E acrescentou:
          —  Ninguém,  salvo  um  huyhnhnm,  poderia  fazer  semelhante  coisa.
      Confiar o governo de uma construção dessas a um Yahu, é obra de insensatos.
          Esta palavra huyhnhnm, na  sua  língua,  significava  cavalo,  e  quer  dizer,
      conforme a sua etimologia, a perfeição da natureza. Respondi a meu amo que
      me faltavam as expressões, mas, dentro de algum tempo, ficaria em estado de
      lhe referir coisas, que, decerto, o surpreenderiam. Exortou a senhora égua sua
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