Page 281 - As Viagens de Gulliver
P. 281
CAPÍTULO IV
Idéias dos huyhnhnms acerca da verdade e da mentira — As dissertações do autor
são censuradas por seu amo.
E nquanto pronunciava as derradeiras palavras, meu amo parecia inquieto,
embaraçado e como fora de si. Duvidar e não acreditar o que se ouve dizer é
para os huyhnhnms uma operação de espírito a que não estão habituados, e,
quando são obrigados a isso, o espírito sai-lhes por assim dizer fora da órbita
natural. Recordo-me até de que, conversando algumas vezes com meu amo a
respeito das propriedades da natureza humana, tal como existe nas outras partes
do mundo, e havia ocasião para lhe falar da mentira e do engano, tinha muito
custo em perceber o que lhe queria dizer, porque raciocinava assim: o uso da
palavra foi-nos dado para comunicar uns aos outros o que pensamos e para
sabermos o que ignoramos. Ora, se se diz a coisa que não é, não se procede
conforme a intenção da natureza; faz-se um abusivo uso da palavra; fala-se e não
se fala. Falar não é fazer compreender o que se pensa?
— Ora, quando o senhor faz o que se chama mentir, dá-me a
compreender o que não se pensa: em vez de me dizer o que é, não fala, só abre a
boca para articular sons vãos, não me tira da ignorância, aumenta-a.
Tal é a idéia que os huyhnhnms têm da faculdade de mentir, que nós,
homens, possuímos num grau tão perfeito e tão eminente.
Para voltar à conversa particular de que se trata, quando garanti a sua
honra que os Yahus eram, no meu país, os animais senhores e dominadores (o que
deveras o admirou) perguntou-me se tínhamos huyhnhnms e qual era o seu