Page 287 - As Viagens de Gulliver
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fazer morrer até agora quase um milhão de Yahus; que tinha como conseqüência
      mais de cem cidades assaltadas e tomadas e mais de trezentos navios incendiados
      e afundados.
          Perguntou-me, então, quais eram as causas e os motivos mais vulgares
      das nossas questões, às quais eu dava o nome de guerra. Respondi-lhe que essas
      causas eram inúmeras e que lhe citaria apenas as principais.
          — Muitas vezes — lhe disse eu — é a ambição de certos príncipes, que
      nunca julgam ter muitas terras nem governar muitos povos. Algumas vezes, é a
      política dos ministros, que querem dar emprego aos súditos descontentes. Outras,
      tem sido a divergência de espíritos sobre a escolha de opiniões. Um imagina que
      assobiar é um bonito ato; outro, que é um crime; este diz que é preciso vestuário
      branco; aquele, que é preciso usá-lo preto, vermelho, cinzento; um é de opinião
      que o chapéu deve ser pequeno e de aba direita; outro, que deve ser grande e de
      aba  caída  sobre  as  orelhas,  etc.  (Imaginei  de  propósito  estes  quiméricos
      exemplos, não querendo explicar-lhe as verdadeiras causas das nossas dissensões
      com respeito à opinião, visto que teria certo custo e me envergonharia deveras
      em  fazer-lhas  compreender).  Acrescentei  que  as  nossas  guerras  nunca  eram
      mais  longas  nem  mais  sangrentas  do  que  quando  eram  motivadas  por  essas
      diferentes opiniões, que esses cérebros escandescidos sabiam fazer valer quer de
      um lado, quer do outro, e pelas quais se exaltam a ponto de pegar em armas.
          Prossegui:
          Dois príncipes estiveram em guerra, porque ambos queriam despojar um
      terceiro dos seus Estados, sem que a isso tivesse direito qualquer deles. Às vezes,
      um soberano atacava outro com receio de que este o atacasse. Declaram guerra
      ao seu vizinho, ora porque é muito forte, ora porque é muito fraco. Muitas vezes
      esse vizinho possui coisas que nos faltam e a ele faltam coisas que nós possuímos;
      então, declara-se a guerra para se possuir tudo ou nada. Um outro motivo que dá
      lugar à guerra num país, é quando este se encontra desolado pela fome, dizimado
      pela peste, roto pelas facções. Uma cidade está ao agrado de um príncipe e a
      posse de uma pequena província arredonda o seu Estado? motivo de guerra. Um
      povo é ignorante, simples, grosseiro e fraco? ataca-se chacinando uma parte e
      reduzindo a outra à escravidão, e isto com o fim de civilizá-lo. Uma guerra é
      muito gloriosa, quando um generoso soberano vem em socorro de outro, que o
      chamou e que, depois de ter expulso o usurpador, se apodera dos próprios Estados
      que socorreu, mata, põe a ferros ou expulsa o príncipe que lhe implorara auxílio.
      A  consangüinidade,  as  alianças,  os  casamentos  são  outros  tantos  motivos  de
      guerra entre os príncipes; quanto mais aparentados são, mais próximos estão de
      ser  inimigos.  As  nações  pobres  estão  esfomeadas;  as  nações  ricas  são
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