Page 290 - As Viagens de Gulliver
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direito, nem por isso deixo de encontrar dois grandes obstáculos; o primeiro é que
o Yahu, ao qual recorri para defender a minha causa, está, por ofício e espírito
profissional, habituado desde a mocidade a advogar a falsidade, de maneira que
se vê fora do seu elemento quando lhe digo a verdade nua e não sabe como
desvencilhar-se; o segundo obstáculo é que o mesmo procurador, não obstante a
simplicidade do pleito de que o encarreguei, é obrigado a embrulhá-lo, para se
conformar com o uso dos seus colegas e prolongá-lo o mais que puder, do
contrário acusá-lo-iam de estragar o ofício e dar mau exemplo. Estando as coisas
neste pé, só me restam dois meios para me desembaraçar da questão: o primeiro
é ir ter com o procurador da parte contrária e tentar suborná-lo, dando-lhe o
dobro do que esperava receber do seu constituinte; e decerto vossa honra
compreende que me não é difícil fazê-lo pender para uma proposta tão
vantajosa; o segundo meio, que vai talvez surpreendê-lo, mas é menos infalível, é
recomendar a este Yahu, que me serve de procurador, pleiteie a minha causa um
pouco confusamente e faça entrever aos juízes que a minha vaca podia não ser
minha, mas do meu vizinho. Então os juízes, pouco habituados às coisas claras e
simples, darão mais atenção aos subtis argumentos do meu advogado, acharão
gosto em ouvi-lo e a contrabalançar o pró e o contra e, nesse caso, estarão
melhor dispostos a julgar em meu favor do que se ele se limitasse a provar o
direito, que me assistisse, em quatro palavras. Uma das máximas dos juízes é que
tudo quanto foi julgado, foi bem julgado. Assim, têm o máximo cuidado em
conservar num cartório todas as decisões anteriormente tomadas, mesmo as
ditadas pela ignorância, e que são o mais manifestamente possível opostas à
equidade e à justa razão. Estas anteriores decisões formam o que se chama
jurisprudência; são alegadas como autoridades e não há coisa alguma que não se
prove e não se justifique, citando-as. Data de há pouco, contudo, o abandono do
abuso que havia em dar tanta força à autoridade das causas julgadas; citam-se
sentenças pró e contra, trata-se de ver que as espécies nunca podem ser
completamente semelhantes e ouvi dizer a um juiz que as sentenças são para
aqueles que as alcançam. De resto, a atenção dos juízes volta-se sempre mais
para as circunstâncias do que para a causa principal. Por exemplo: no caso da
minha vaca, quererão saber se é vermelha ou negra, se tem grandes cornos; em
que campina costuma pastar; que quantidade de leite fornece por dia, e assim
sucessivamente; isto feito, põem-se a consultar as antigas decisões. De tempos a
tempos trata-se da questão; por muito feliz se deve dar o constituinte se for
julgada ao fim de dez anos! É preciso observar ainda que os homens de lei têm
uma linguagem especial, um calão que lhes é próprio; um modo de se exprimir
que os outros não entendem; é nesta magnífica linguagem que são escritas as leis,
leis multiplicadas ao infinito e acompanhadas de inúmeras exceções. Vossa honra
vê perfeitamente que, neste labirinto, o justo direito se perde facilmente; que a
melhor questão é difícil de ganhar-se; e que, se algum estrangeiro, nascido a