Page 294 - As Viagens de Gulliver
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têm necessidade, que vive o nosso pequeno povo. Por exemplo: quando estou em
      minha casa, vestido como devo estar, trago sobre o meu corpo o trabalho de cem
      operários. Um milhão de mãos contribuiu para construir e mobilar a minha casa,
      e ainda são precisos cinco ou seis vezes mais para vestir minha mulher.
          Tinha chegado ao ponto de descrever-lhe certos Yahus, que passam a vida
      junto dos que estão ameaçados de a perder, isto é, dos nossos médicos. Dissera a
      sua honra que a mor parte dos meus companheiros de viagem tinha morrido de
      doença;  ele,  porém,  tinha  uma  idéia  muito  imperfeita  do  que  eu  lhe  dissera.
      Sobre o caso, porém, tinha ele opinião bem diferente.
          Imaginava  que  morríamos  como  todos  os  outros  animais  e  que  não
      tínhamos outra doença além de fraqueza e de pesadelo um momento antes de
      morrer, a menos que fôssemos feridos por qualquer acidente. Fui, pois, obrigado
      a  explicar-lhe  a  natureza  e  a  causa  das  nossas  outras  doenças.  Disse-lhe  que
      comíamos sem ter fome; que bebíamos sem ter sede; que passávamos as noites a
      tomar bebidas abrasadoras sem comer absolutamente nada, o que inflamava as
      nossas entranhas, arruinava o nosso estômago e espalhava em todos os membros
      uma  fraqueza  e  uma  languidez  mortais;  que  muitas  fêmeas  da  nossa  espécie
      tinham  um  certo  vírus  que  dividiam  com  os  seus  amantes;  que  essa  doença
      funesta,  assim  como  muitas  outras,  nascia  algumas  vezes  conosco  e  nos  era
      transmitida pelo sangue; enfim, que nunca mais acabaria, se quisesse expor-lhe
      todas as doenças a que estávamos sujeitos: que havia pelo menos quinhentas a
      seiscentas em relação a cada membro, e que cada parte, fosse externa, fosse
      interna, tinha uma infinidade, que lhe era própria.
          — Para curar todos esses males — acrescentei — tínhamos Yahus que se
      consagravam unicamente ao estudo do corpo humano, e que pretendiam, com
      remédios eficazes, extirpar as nossas doenças, lutar contra a própria natureza e
      prolongar as nossas vidas.
          Como se tratava da minha profissão, expliquei com prazer a sua honra o
      método dos nossos médicos e todos os mistérios da medicina.
          —  Em  primeiro  lugar  —  continuei  —  é  preciso  supor  que  todas  as
      doenças  provêm  de  repleção,  concluindo,  por  isso,  os  médicos,  sensatamente,
      que a evacuação é necessária, seja por baixo, seja por cima. Para isso, fazem
      uma escolha de ervas, de minerais, de gomas, de óleos, de escamas, de sais, de
      excrementos, de cascas de árvores, de serpentes, de sapos, de rãs, de aranhas, de
      peixes, e de tudo isto nos fabricam um licor de um cheiro e gosto abomináveis,
      que faz ânsias ao coração, horroriza e revolta todos os sentidos. É este licor que os
      nossos médicos nos mandam beber para produzir a evacuação por cima, que se
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