Page 289 - As Viagens de Gulliver
P. 289
provas. O seu discurso perturba-me o espírito e coloca-me numa situação em
que nunca me encontrei; receio que os meus sentidos, aterrorizados com essas
horríveis imagens que me traçou, não venha a pouco e pouco a habituar-se a
elas. Odeio os Yahus desta região, mas, apesar de tudo, perdôo todas as suas
odiosas qualidades, visto como a natureza assim os formou e não possuem
raciocínio para se governar e corrigir-se; porém que uma criatura, que se gaba
de possuir este raciocínio, em partilha, seja capaz de cometer ações tão
execrandas e de se entregar a excessos tão horríveis, é o que não posso
compreender e me faz concluir que o estado dos irracionais ainda é preferível a
um raciocínio corrupto e depravado; mas, de fato, o vosso raciocínio é um
verdadeiro raciocínio? Não será antes um talento com que a natureza vos dotou
para aperfeiçoar todos os vícios? Mas — acrescentou — nada me tem dito com
respeito ao assunto a que chamam guerra. Há um ponto que interessa a minha
curiosidade. Parece que disse havia nesse bando de Yahus que o acompanhava no
seu navio, miseráveis que os processos haviam arruinado e despojado de tudo; e
qual era a lei que os pusera naquele triste estado? Além disso, que lei é essa? A
sua índole e o seu raciocínio não bastam e não prescrevem claramente o que
devem e o que não devem fazer?
Respondi a sua honra que eu não estava absolutamente versado na ciência
da lei; que o pouco conhecimento que possuía de jurisprudência aprendera no
convívio de alguns advogados que outrora consultara sobre os meus negócios;
que, no entanto, ia dizer-lhe o que soubesse a tal respeito. Falei-lhe, pois:
— O número daqueles que, entre nós, se dão à jurisprudência e fazem
profissão de interpretar a lei, é infinito e ultrapassa o das lagartas. Têm entre si
todas as espécies de escalas, de distinções e de nomes. Como a sua enorme
quantidade torna o ofício pouco lucrativo, para fazer de maneira que, ao menos,
lhes dê para viver, recorrem à indústria e à chicana. Aprenderam, logo nos
primeiros anos, a arte maravilhosa de provar, com um discurso retorcido, que o
preto é branco e o branco é preto.
— São estes que arruinam e despojam os outros, com a sua habilidade? —
atalhou sua honra.
— São, decerto — repliquei eu — e vou citar-lhe um exemplo, a fim de
que melhor possa ajuizar do que digo. Imagine que o meu vizinho tem vontade de
possuir a minha vaca; vai logo ter com um procurador, isto é, um douto intérprete
de prática da lei, e promete-lhe uma recompensa se puder fazer ver que a minha
vaca não é minha. Sou obrigado a dirigir-me também a um Yahu da mesma
profissão para defender o meu direito, visto que a lei me não permite que me
defenda a mim próprio. Ora, eu, que tenho certamente por um lado a justiça e o