Page 293 - As Viagens de Gulliver
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— Nada disso! — lhe respondi — Aqueles que fazem viver todos os outros
      pela cultura da terra são exatamente os que morrem de fome.
          — Mas — prosseguiu ele —, que entende pela expressão de pratos finos,
      quando me disse que com dinheiro se comiam pratos finos no seu país?
          Pus-me então a explicar-lhe as iguarias mais esquisitas que vulgarmente
      aparecem  na  mesa  dos  ricos  e  os  diferentes  modos  por  que  se  preparam  as
      carnes;  disse-lhe  sobre  isto  tudo  quanto  me  acudiu  ao  espírito  e  informei-o  de
      que, para bem temperar as carnes, e sobretudo para ter bons licores, armávamos
      navios e empreendíamos longas e perigosas viagens pelo mar; de maneira que,
      antes de poder dar uma esplêndida refeição a algumas fêmeas de distinção, era
      preciso mandar muitos navios às quatro partes do mundo.
          —  O  seu  país  —  retorquiu  ele  —  é  muito  miserável,  pois  não  fornece
      alimento  para  os  seus  habitantes!  Nem  sequer  há  água  e  são  obrigados  a
      atravessar mares para encontrar de beber!
          Repliquei-lhe que a Inglaterra, minha pátria, produzia tanto alimento que
      era  impossível  aos  habitantes  consumi-lo  e  que,  com  respeito  à  bebida,
      fabricávamos um excelente licor com suco de certos frutos ou com o extrato de
      alguns  cereais;  que,  numa  palavra,  nada  faltava  para  as  nossas  necessidades
      naturais; mas, para manter o nosso luxo e a nossa intemperança, enviávamos a
      países estranhos o que tínhamos a mais no nosso e recebíamos dos outros o que
      não  tínhamos  e  que,  em  troca,  trazíamos  artigos  que  serviam  para  nos  tirar  a
      saúde  e  nos  encher  o  corpo  de  vícios;  que  esse  amor  pelo  luxo,  pelos  pratos
      exóticos, e pelo prazer, era o princípio de todos os movimentos dos nossos Yahus;
      que, para atingi-lo, era preciso enriquecer; que era isso que produzia ratoneiros,
      ladrões, perjuros, patifes, lisonjeiros, subornadores, falsários, falsas testemunhas,
      mentirosos,  jogadores,  impostores,  fanfarrões,  maus  autores,  envenenadores,
      impudentes,  pretensiosos,  ridículos,  espíritos  fracos.  Foi-me  necessário  definir
      todos estes termos.
          Acrescentei que o trabalho que tínhamos em ir buscar vinho em países
      estrangeiros, não era por falta de água ou de outro licor bom para viver, mas
      porque o vinho era uma bebida que nos tornava alegres; que nos fazia de algum
      modo sair fora de nós mesmos; que afugentava do nosso espírito todas as idéias
      tristes;  que  enchia  a  nossa  cabeça  de  mil  imaginações  loucas;  que  excitava  a
      coragem,  bania  o  receio  e  nos  libertava,  por  algum  tempo,  da  tirania  do
      raciocínio.
          — É — continuei eu — fornecendo aos ricos todas as coisas de que eles
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