Page 298 - As Viagens de Gulliver
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Embora os revelasse, usava de restrições mentais e tentava dizer o falso sem
mentir. Não era eu digno de desculpa nisto? Quem não é um pouco parcial,
quando se trata da própria pátria?
Relatei até aqui a súmula das conversas que tive com meu amo, durante o
tempo em que me honrei de estar a seu serviço; mas, para evitar ser prolixo,
passei em claro muitos outros assuntos.
Um dia, em que mandou chamar-me de madrugada e ordenou que me
sentasse a alguma distância dele (honra que ainda me não havia dado), falou
assim:
— Passei pelo meu espírito tudo que me tem dito, quer a seu respeito,
quer a respeito do seu país. Vejo claramente que o senhor e os seus compatriotas
têm uma centelha de espírito, sem que possa adivinhar como esse pequeno dom
lhes coube em partilha; mas vejo também que o uso que fazem dele é apenas
para aumentar todos os seus defeitos naturais e para adquirir outros, que a
natureza lhes não deu. É certo que se parecem com os Yahus deste país pela
configuração exterior e que só lhes falta, para serem perfeitamente iguais a eles,
força, agilidade e garras mais compridas. Mas, pelo lado dos costumes, a
semelhança é completa. Odeiam-se mortalmente e o motivo que encontramos
para isso é que vêem reciprocamente a sua fealdade e a sua odiosa
configuração, sem que nenhum olhe para si próprio. Como os senhores possuem
um átomo de raciocínio e compreendem que a vista recíproca da impertinente
figura dos seus corpos era igualmente uma coisa insuportável e que os tornaria
odiosos mutuamente, têm o bom senso de os encobrir por prudência e amor-
próprio; mas, apesar desta precaução, não se odeiam menos, porque outros
assuntos de divergência, que reinam entre os nossos Yahus, também reinam entre
os senhores. Se, por exemplo, atiramos carne a cinco Yahus, que bastaria para
saciar cinqüenta, esses cinco animais, gulosos e vorazes, em vez de comerem em
paz o que se lhes dá em abundância, lançam-se uns contra os outros, mordem-se,
dilaceram-se e todos querem tudo para si, de maneira que temos de os servir à
parte e mesmo prender os que já estão saciados, com receio de que se lancem
sobre os outros, que ainda não o estão. Se alguma vaca da vizinhança morre de
velhice ou de acidente, os nossos Yahus mal sabem da agradável notícia, entram
todos em campo, rebanho contra rebanho, curral contra curral, a ver qual se
apossará da vaca. Batem-se, arranham-se, dilaceram-se, até que a vitória penda
para um lado e, se não há morticínio, é porque não têm o raciocínio dos Yahus da
Europa para inventar máquinas de carnificina e outras espécies de armas
assassinas. Temos, em alguns pontos da região, certas pedras brilhantes de
diversas cores, que os nossos Yahus muito apreciam. Quando as encontram,
fazem o possível para as desenterrar de onde estão ordinariamente metidas;