Page 303 - As Viagens de Gulliver
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pretos e a pele mais cinzenta do que todas as que tinha visto.
Como me demorei três anos naquela região, decerto o leitor espera de
mim, a exemplo de todos os outros viajantes, que faça uma narrativa ampla dos
habitantes desse país, quero dizer, dos huyhnhnms, e que exponha
pormenorizadamente os seus usos, costumes, máximas e modos. É isso também
o que vou fazer, mas em poucas palavras.
Como os huyhnhnms, que são os senhores e os animais dominantes nesta
região, nasceram com grande propensão para a virtude e nem sequer fazem a
idéia do mal com relação a uma criatura racional, a principal máxima é cultivar
e aperfeiçoar o seu raciocínio e tomá-lo por guia em todos os seus atos. Entre
eles, a razão não produz problemas como entre nós e não forma argumentos
igualmente verossímeis pró e contra. Ignoram o que seja suscitar dúvidas,
defender sentimentos absurdos e máximas perniciosas ou indignas a favor da
probabilidade. Tudo o que eles dizem, convence, porque não afirmam coisa
alguma obscura, duvidosa, desfigurada ou disfarçada pelas reflexões e pelo
interesse. Recordo-me de que tive muito trabalho em fazer compreender a meu
amo o que entendia pela palavra opinião, e como era possível que nós
discutíssemos algumas vezes e que raramente fôssemos do mesmo parecer.
— Não é imutável a razão? — perguntava ele — A verdade não é uma só?
Devemos garantir como certo o que é duvidoso? Devemos negar positivamente o
que não vemos claramente que pode ser? Por que se debatem questões que a
evidência não pode decidir, sobre as quais, fosse qual fosse o partido que
tomassem, sempre encontrariam a dúvida e a incerteza? Para que servem todas
essas conjecturas filosóficas, todos esses vãos raciocínios acerca de matérias
incompreensíveis, todas essas indagações estéreis e essas eternas discussões?
Quem tem boa vista não anda aos encontrões: com uma razão pura e penetrante
não se deve contestar e, se assim o fazem, é porque é preciso que a sua razão
esteja coberta de trevas ou que odeiem a verdade.
Era uma coisa admirável a sã filosofia deste cavalo; Sócrates nunca
raciocinou com tanta sensatez. Se seguíssemos estas máximas, haveria
certamente na Europa menos erros de que os que existem. Mas, então, em que se
tornariam as nossas bibliotecas? Que seria feito da reputação dos nossos sábios e
do negócio dos nossos livreiros? A república das letras seria apenas a da razão e
nas universidades só haveria aulas de bom senso.
Os huyhnhnms amam-se reciprocamente, auxiliam-se, amparam-se e
consolam-se mutuamente: não se invejam, não são ciosos da felicidade dos
vizinhos; não atentam contra a liberdade e a vida dos seus semelhantes: julgar-se-