Page 307 - As Viagens de Gulliver
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tão mau e que os haviam destinado a serem domesticados. Acrescentou que o
      que havia de mais certo nesta lenda é que os Yahus não eram Ylnhniam sky (isto é,
      aborígines). Demonstrou  que  os  habitantes da  região  tinham  tido  a imprudente
      fantasia  de  se  servir  dos  Yahus  em  detrimento  do  uso  dos  burros,  que  eram
      excelentes animais, meigos, pacíficos, dóceis, submissos, que com qualquer coisa
      se alimentavam, infatigáveis, e que tinham o único defeito de possuir uma voz
      desagradável, embora muito menos do que a maior parte dos Yahus.
          Logo  que  os  outros  deputados  tinham  discursado  diversamente,  porém
      com  muita  eloqüência,  a  respeito  do  mesmo  assunto,  meu  amo  levantou-se  e
      apresentou  uma  judiciosa  proposta,  cuja  idéia  eu  lhe  inspirara.  A  princípio
      confirmou a tradição popular pelo seu sufrágio e apoiou o que sabiamente tinha
      dito sobre esse ponto de história o honrado membro que usara da palavra antes
      dele. Mas acrescentou que esses dois primeiros Yahus, de que se tratava, tinham
      vindo  de  qualquer  país  de  além-mar,  e  haviam  desembarcado  e  sido
      abandonados  pelos  seus  companheiros;  que  primeiramente  se  tinham  retirado
      para  as  montanhas  e  para  as  florestas;  que,  na  continuação,  a  sua  índole  se
      alterara; que se haviam tornado selvagens e ferozes e completamente diferentes
      dos da boa espécie, que habita em países afastados. Para estabelecer e apoiar
      solidamente esta proposta, disse que tinha em sua casa, desde algum tempo, um
      Yahu  muito  extraordinário,  de  quem  certamente  os  membros  da  assembléia
      tinham ouvido falar e que até muitos o haviam visto. Contou, então, como me
      encontrara  a  princípio  e  como  o  meu  corpo  era  coberto  de  uma  composição
      artificial de pêlos e de peles de animais; disse que possuía uma linguagem que
      me  era  própria  e  que,  no  entanto,  aprendera  perfeitamente  a  sua;  que  eu  lhe
      referira o acidente que me trouxera a esta costa; que me vira despido e nu, e
      observara que eu era um verdadeiro e perfeito Yahu se não fora a pele branca ter
      pouco pêlo e garras curtas em demasia.
          — Este Yahu estrangeiro — acrescentou — quis-me persuadir de que, no
      seu  país  e  em  muitos  outros  que  percorreu,  os  Yahus  são  os  únicos  animais
      senhores, dominantes e racionais, e que os huyhnhnms vivem na escravidão e na
      miséria. Tem certamente todas as qualidades exteriores dos nossos Yahus, mas é
      preciso confessar que é mais bem educado e tem alguma tintura de razão. Não
      raciocina  como  um  huyhnhnm,  mas  ao  menos  possui  conhecimentos  e  luzes
      muito  superiores  às  dos  nossos  Yahus.  Mas  aqui  está,  senhores,  o  que  vai
      surpreendê-los e para o que peço a máxima atenção; acreditá-lo-ão? Assegurou-
      me que, no seu país, os huyhnhnms eram feitos eunucos desde a mais tenra idade;
      que isto os fazia mais meigos e dóceis, e que essa operação era feita muito bem e
      sem perigo algum. Será a primeira vez, senhores, que os animais nos terão dado
      alguma lição e que teremos seguido o seu exemplo? A formiga não nos ensinou a
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