Page 312 - As Viagens de Gulliver
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ciladas ocultas dos inimigos. Não tinha tentações para vir vergonhosamente fazer
      corte a um fidalgo ou à amante, para me conceder honra da sua proteção e da
      sua benevolência. Não era obrigado a precaver-me contra a fraude e a opressão;
      não  tinha  aí  espião  ou  denunciante  pago,  nem  lord-mayor  crédulo,  político
      estouvado  ou  malfazejo.  Aí  não  receava  ter  a  minha  honra  menoscabada  por
      absurdas  acusações,  e  a  minha  liberdade  vergonhosamente  roubada  por
      conspirações indignas nem ordens de prisão sacadas por alicantinas. Naquele país
      não havia médicos para me envenenarem, procuradores para me arruinarem,
      nem  autores  para  me  aborrecerem.  Não  me  via  rodeado  de  trocistas,  de
      gracejadores,  de  maldizentes,  de  críticos,  de  caluniadores,  de  ratoneiros,  de
      espíritos  fracos,  de  hipocondríacos,  de  tagarelas,  de  caturras,  de  facciosos,  de
      sedutores, de falsos sábios.
          Não  havia  por  lá  mercadores  fraudulentos,  peralvilhos,  loquazes,
      desenxabidos,  delicados,  namoradores  adamados,  presumidos,  espadas  de
      arrasto, bêbados, invertidos e pedantes.
          Os meus ouvidos não tinham sido enxovalhados por conversas licenciosas
      e  ímpias;  os  meus  olhos  não  eram  impressionados  nem  pela  presença  de  um
      maroto rico e educado nem pela de um honrado homem abandonado tanto à sua
      virtude como ao seu mau destino.
          Tinha a honra de me entender muita vez com os senhores huylmlinms, que
      visitavam meu amo, que consentia que eu, de vez em quando, entrasse na sala
      para  me  aproveitar  da  sua  conversa.  Aquela  sociedade  dirigia-me  às  vezes
      algumas  perguntas,  às  quais  eu  tinha  a  honra  de  responder.  Acompanhava
      também meu amo nas suas visitas, mas permanecia sempre em silêncio, salvo se
      me interrogavam. Fazia de personagem auditor com infinito prazer: tudo o que
      ouvia era útil e agradável e sempre expresso em poucas palavras, porém com
      graça; o melhor bem-estar era observado sem cerimônia; cada um dizia o que
      lhe podia agradar. Nunca se interrompiam, nunca se davam a longas e fastidiosas
      narrativas, nunca havia discussões, nunca se chicanava.
          Tinham por máxima que, numa sociedade, é bom que o silêncio reine de
      vez em quando, e parece-me que tinham razão. Neste intervalo, e durante esta
      espécie de tréguas, o espírito fornece-se de idéias novas e a conversa torna-se
      depois  mais  animada  e  viva.  As  conversas  baseavam-se  sempre  sobre  as
      vantagens  e  agrados  da  amizade,  sobre  os  deveres  da  justiça,  a  bondade,  a
      ordem,  as  admiráveis  obras  da  natureza,  as  antigas  tradições,  as  condições  e
      limites  da  virtude,  as  invariáveis  regras  do  raciocínio;  algumas  vezes  sobre  as
      deliberações da próxima reunião do parlamento e muitas outras sobre o mérito
      dos seus poetas e as qualidades da boa poesia.
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