Page 313 - As Viagens de Gulliver
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Posso dizer, sem vaidade, que eu próprio fornecia, algumas vezes,
conversa, isto é, dava ensejo a fortes raciocínios; porque meu amo narrava-lhes,
de vez em quando, as minhas aventuras e a história do meu país, o que lhes fazia
ter reflexões muito pouco vantajosas para a raça humana e que, por essa razão,
não apontarei. Observarei apenas que meu amo parecia conhecer melhor a
natureza dos Yahus que vivem nas outras partes do mundo que eu próprio
conhecia. Descobria a fonte de todos os nossos desvairamentos, profundava a
matéria dos nossos vícios e das nossas loucuras, e adivinhava uma infinidade de
coisas de que eu nunca falara. Isto não deve parecer incrível, pois conhecia a
fundo os Yahus do seu país, de maneira que, supondo neles um pequeno grau de
raciocínio, calculava o que seriam capazes com esse acréscimo, e o seu cálculo
era sempre justo.
Confessarei aqui ingenuamente que as poucas luzes e filosofia que hoje
possuo, apanhei-as nas sábias lições desse caro amo e nas conversas de todos
esses seus judiciosos amigos, conversas preferíveis às doutas conferências das
academias de Inglaterra, Alemanha e Itália. Tinha por todos esses personagens
uma inclinação mesclada de respeito e temor, e sentia-me penetrado de
reconhecimento pela bondade que tinham para comigo, não me confundindo
com os seus Yahus e de me crerem um pouco menos imperfeito do que os do
meu país.
Quando me lembrava de minha família, dos meus amigos, dos meus
compatriotas e de toda a raça humana em geral, representavam-se-me todos
como verdadeiros Yahus, pelo rosto e pelo carácter, contudo um pouco mais
civilizados, com o dom da palavra e um pequeno grau de raciocínio. Quando vi o
meu rosto na água pura de um límpido regato, desviei-me imediatamente, não
podendo suportar a vista de um animal que me parecia tão disforme como um
Yahu. Os meus olhos, costumados à nobre figura dos huyhnhnms, só neles
encontrava beleza animal. À força de os contemplar e de lhes falar, tomara um
pouco das suas conveniências, dos seus gestos, das suas atitudes, dos seus passos e
hoje, que estou na Inglaterra, os meus amigos dizem-me, algumas vezes, que
troto como um cavalo. Quando falo ou rio parece-lhes que rincho. Vejo-me todos
os dias assediado a este respeito sem sentir o menor desgosto.
Nesta feliz situação, enquanto saboreava as doçuras de um perfeito
repouso, em que me julgava tranqüilo para todo o resto da minha vida, e que o
meu estado era o mais agradável e o mais digno de inveja, um dia meu amo
mandou-me chamar mais cedo do que era costume. Quando me encontrei junto
dele, reparei em que estava muito sério, com ar inquieto e perturbado, querendo
falar e não podendo abrir a boca. Depois de algum tempo de silêncio dirigiu-me
estas palavras: