Page 304 - As Viagens de Gulliver
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iam  infelizes,  se  algum  dia  o  fizessem;  dizem,  a  exemplo  de  um  antigo:  Nihil
      caballorum a me alienum puto (1).  Não  maldizem  uns  dos  outros;  a  sátira  não
      encontra neles nem princípio nem meio; os superiores não oprimem os inferiores
      com  o  peso  do  seu  grau  e  da  sua  autoridade;  o  seu  modo  de  proceder,  justo,
      prudente e moderado nunca produz murmurações; a dependência é um laço e
      não um jugo, e o poder, sempre submetido às leis da equidade, é respeitado sem
      ser temido.
          Os seus casamentos são melhor regulados do que os nossos. Os machos
      escolhem para esposas fêmeas da sua cor. Um ruço-malhado casa sempre com
      uma  ruça-malhada,  e  assim  consecutivamente.  Por  esta  razão  nunca  se  vê
      mudança, revolta ou míngua nas famílias. Os filhos são o vivo retrato dos pais; as
      armas  e  o  título  de  nobreza  consistem  na  conformação,  estatura,  cor  e
      qualidades, que se perpetuam na descendência, de maneira que não se vê um
      cavalo magnífico e soberbo gerar um sendeiro, nem de uma sendeira nascer um
      bonito cavalo, como muitas vezes acontece na Europa.
          Entre  esses  animais  não  há  desavenças  caseiras.  A  esposa  é  fiel  ao
      marido, e o marido paga-lhe na mesma moeda.
          Um e outro, embora envelheçam, não esfriam as suas relações, quando
      mais  não  seja  as  do  coração;  apesar  de  permitidos,  o  divórcio  e  a  separação
      nunca  foram  postos  em  prática;  os  esposos  são  sempre  amantes  e  as  esposas
      sempre queridas; eles não são imperiosos, elas não são rebeldes e nunca pensam
      em  recusar  aquilo  a  que  os  maridos  têm  direito  e  que  quase  sempre  se
      encontram em estado de exigir.
          A  castidade  mútua  é  o  fruto  da  razão  e  nunca  do  receio,  atenção  ou
      preconceito. São castos e fiéis, porque, para conservar tanto a suavidade como a
      boa ordem da vida, assim ê preciso e o prometeram. É o único motivo que lhes
      faz considerar a castidade como uma virtude. Além disso, têm na conta de um
      vício condenado pela natureza a negligência de uma propagação legítima da sua
      espécie  e  aborrecem  tudo  quanto  pode  causar  obstáculo  ou  demora  no
      cumprimento desse dever.
          Educam os filhos com extraordinário cuidado. Enquanto a mãe vela pelo
      corpo  e  pela  saúde,  o  pai  atende  ao  espírito  e  à  razão.  Reprimem-lhes  tanto
      quanto possível os ímpetos e os ardores fogosos da juventude e casam-nos cedo,
      em conformidade com os conselhos da razão e os desejos da natureza. Enquanto
      esses casamentos não se realizam, não consentem aos moços mais do que uma
      concubina, que mora na mesma casa e faz parte do número de criados, mas é
      sempre despedida nas vésperas do casamento.
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