Page 297 - As Viagens de Gulliver
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CAPÍTULO VII
Paralelo entre os Yahus e os homens.
O leitor estará talvez escandalizado com os retratos fiéis que tracei, então, da
espécie humana, e da sinceridade com que falei ante um soberbo animal que
formava já uma tão má opinião acerca dos Yahus; confesso, porém,
ingenuamente, que o carater dos huyhnhnms e as excelentes qualidades desses
virtuosos quadrúpedes tinham feito uma tal impressão sobre o meu espírito, que
não podia compará-los a nós outros, humanos, sem desprezar os meus
semelhantes. Este desprezo fez-me vê-los como quase indignos de toda
consideração. Além disso, meu amo tinha a inteligência muito penetrante e
notava todos os dias na minha pessoa defeitos enormes, de que me não percebera
e que olhava simplesmente como ligeiras imperfeições. As suas judiciosas
observações inspiraram-me um espírito crítico e misantropo, e o amor que tinha
pela verdade me fez detestar a mentira e tirar todo o disfarce às minhas
narrativas.
Confessarei, contudo, ainda outra ingenuidade, um outro princípio da
minha sinceridade. Quando passei um ano entre os huyhnhnms, senti por eles
tanta amizade, respeito, estima e veneração, que resolvi então nunca mais pensar
em voltar ao meu país, mas acabar os meus dias nesta feliz região, aonde o céu
me conduziu para me ensinar a cultivar a virtude. Por muito feliz me daria, se a
minha resolução tivesse sido eficaz! Mas o azar, que sempre me perseguiu, não
me permitiu que eu gozasse dessa felicidade. Seja como for, agora que estou em
Inglaterra, sinto-me bem contente por não ter dito tudo e haver ocultado aos
huyhnhnms três quartos das nossas extravagâncias e vícios; empalidecia até, de
vez em quando, tanto quanto me era possível, os defeitos dos meus compatriotas.