Page 24 - O Que Faz o Brasil Brasil
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Digo que a casa, por tudo isso, provê uma leitura especial do mundo
brasileiro. É certo que toda sociedade moderna tem casa e rua. Mas
o meu argumento aqui é no sentido de salientar que a casa, entre nós,
ordena um mundo à parte. Universo onde o tempo não é histórico,
mas cíclico, tempo que vive de durações que não se medem por
relógios, mas por retratos amarelados e corroídos pelas traças, como
naquela poesia de Drummond. Um tempo que é medido pela morte
dos mais velhos e pelo batizado dos mais novos. Um tempo cuja
duração e experiência podem ser revertidas pela doce saudade dos
dias em que a família estava toda reunida em torno de alguma figura
importante para a sua unidade e sobrevivência, enquanto grupo
uno e integrado. Quer dizer, quando observa mos que a casa
contém todas essas dimensões, temos que nos dar conta de que
vivemos numa sociedade onde casa e rua são mais que meros
espaços geográficos. São modos de ler, explicar e falar do mundo.
Mas como é o espaço da rua? Bem, já sabemos que ela é local
de “movimento”. Como um rio, a rua se move sempre num fluxo de
pessoas indiferenciadas e desconhecidas que nós chamamos de
“povo” e de “massa”. As palavras são reveladoras. Em casa, temos as
“pessoas”, e todos lá são “gente”: “nossa gente”. Mas na rua temos
apenas grupos desarticulados de indivíduos — a “massa” humana
que povoa as nossas cidades e que remete sempre à exploração e a
uma concepção de cidadania e de trabalho que é nitidamente
negativa. De fato, falamos da “rua” como um lugar de “luta”, de
“batalha”, espaço cuja crueldade se dá no fato de contrariar
frontalmente todas as nossas vontades. Daí por que dizemos que a rua
é equivalente à “dura realidade da vida”. O fluxo da vida, com suas
contradições, durezas e surpresas, está certamente na rua, onde o
tempo é medido pelo relógio e a história se faz acrescentando
evento a evento numa cadeia complexa e infinita. Na rua, então, o
tempo corre, voa e passa. Muito mais que no lar, onde ele está
suspenso entre as relações prazerosas e amorosas de todos com todos.