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Digo que a casa, por tudo isso, provê uma leitura especial do mundo

                  brasileiro. É certo que toda sociedade moderna tem casa e rua. Mas
                  o meu argumento aqui é no sentido de salientar que a casa, entre nós,

                  ordena  um  mundo  à  parte.  Universo  onde o tempo não é histórico,

                  mas cíclico, tempo que vive de  durações que não se medem por

                  relógios,  mas por  retratos amarelados e corroídos pelas traças, como
                  naquela poesia de Drummond. Um tempo que é medido pela morte

                  dos  mais  velhos e pelo batizado  dos mais novos. Um tempo cuja

                  duração e experiência podem ser revertidas pela doce saudade dos

                  dias em que a família estava toda reunida em torno de alguma figura
                  importante para a sua unidade  e sobrevivência, enquanto grupo

                  uno e integrado. Quer dizer,  quando observa mos que a casa

                  contém todas essas dimensões,  temos que nos dar conta de que

                  vivemos numa sociedade onde casa e rua são mais que meros

                  espaços geográficos. São modos de ler, explicar e falar do mundo.
                         Mas como é o espaço da rua? Bem, já sabemos que ela é local

                  de “movimento”. Como um rio, a rua se move sempre num fluxo de

                  pessoas indiferenciadas e desconhecidas que nós  chamamos  de
                  “povo” e de “massa”. As palavras são reveladoras. Em casa, temos as

                  “pessoas”, e todos lá são “gente”:  “nossa gente”. Mas na rua temos

                  apenas grupos desarticulados  de indivíduos — a  “massa” humana

                  que povoa as nossas cidades e que remete sempre à exploração e a

                  uma  concepção de cidadania e de trabalho que é nitidamente
                  negativa. De fato, falamos da “rua” como um lugar de “luta”, de

                  “batalha”, espaço cuja crueldade se dá no fato de contrariar

                  frontalmente todas as nossas vontades. Daí por que dizemos que a rua

                  é equivalente à “dura realidade da vida”. O fluxo da vida, com suas
                  contradições, durezas e surpresas, está certamente  na  rua,  onde  o

                  tempo é medido pelo relógio e a  história se faz acrescentando

                  evento a evento numa cadeia complexa e infinita. Na rua, então, o

                  tempo  corre,  voa  e  passa. Muito mais que no lar, onde ele está
                  suspenso entre as relações prazerosas e amorosas de todos com todos.
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