Page 28 - O Que Faz o Brasil Brasil
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atingindo diversas camadas sociais. Creio que isso embebeu de tal
modo as nossas concepções de trabalho e suas relações que até hoje
misturamos uma relação puramente econômica com laços pessoais
de simpatia e amizade, o que confunde o empregado e permite ao
patrão exercer duplo controle da situação. Ele assim pode governar o
trabalho, pois é quem oferece o emprego, e pode controlar as
reivindicações dos empregados, pois apela para a moralidade das
relações pessoais que, em muitos casos, e sobretudo nas pequenas
empresas e no comércio, tende a ofuscar a relação patrão-
empregado. O caso mais típico e mais claro dessa problemática —
muito complexa e a meu ver ainda pouco estudada — é o das
chamadas “empregadas domésticas”, as quais são pessoas que,
vivendo nas casas dos seus patrões, realizam aquilo que, em casa,
está banido por definição: o trabalho. Nessa situação, elas repetem a
mesma situação dos escravos da casa de antigamente, permitindo
confundir relações morais de intimidade e simpatia com uma relação
puramente econômica, quase sempre criando um conjunto de
dramas que estão associados a esse tipo de relação de trabalho onde
o econômico está subordinado ao político e ao moral, ou neles
embebido. Tal como deve ocorrer quando a casa se mistura com a
rua...
O fato, porém, é que a concepção de trabalho fica
confundida num sistema onde as mediações entre casa e rua são tão
complexas. E onde, como vimos, casa e rua são mais que locais físicos.
São também espaços de onde se pode julgar, classificar, medir, avaliar
e decidir sobre ações, pessoas, relações e imoralidades.
Compensando-se mutuamente e sendo ambas complementadas
pelo espaço do “outro mundo”, onde residem deuses e espíritos,
casa e rua formam os espaços básicos através dos quais circulamos
na nossa sociabilidade. Sobretudo porque o que falta na rua existe em
abundância na casa. E ainda porque eles não podem ser confundidos
sob pena de grandes confusões e desordens.