Page 30 - O Que Faz o Brasil Brasil
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No século XVIII, Antonil percebeu algo interessante numa
sociedade dividida entre senhores e escravos, e escreveu: “O Brasil é
um inferno para os negros, um purgatório para os brancos e um
paraíso para os mulatos”. A frase foi, como sempre acontece com as
coisas profundas que são faladas com simplicidade, mal entendida. É
que quase todos os seus intérpretes viram nela uma afirmativa ao pé
da letra, algo que se referia exclusivamente a um fenômeno biológico
e racial, quando de fato ela diz muito mais de fatos sociológicos
básicos. Na verdade, penso que, caso se queira ter uma
compreensão mais profunda e original das relações raciais que
existem no Brasil, será necessário tomar essa expressão nos seus
sentidos velados, considerando todas as suas implicações morais e
políticas. E elas, conforme veremos a seguir, nos levam muito longe de
uma mera questão fisiológica de raças.
Digo que a frase de Antonil tem um sentido sociológico e
simbólico profundo porque, no contexto das teorias raciais do
momento, ela é no mínimo contraditória. Realmente, não custa
relembrar que as teorias racistas européias e norte-americanas
não eram tanto contra o negro ou o amarelo (o índio,
genericamente falando, também discriminado como inferior), que
eram nítida e injustamente inferiorizados relativamente ao branco,
mas que também eram vistos como donos de poucas qualidades
positivas enquanto “raça”. O problema maior dessas doutrinas, o
horror que declaravam, era, isso sim, contra a mistura ou
miscigenação das “raças”. É certo, diziam elas, que havia uma
nítida ordem natural que graduava, escalonava e hierarquizava as
“raças humanas”, conforme ocorria com as espécies de animais e as
plantas; é certo também, afirmavam tais teorias, que o branco se
situava no alto da escala, com o branco da Europa Ocidental
assumindo indiscutível posição de liderança na criação animal e
humana do planeta. Mas era também seguro que amarelos e negros
tinham qualidades que a mistura denegria e levava ao extermínio.