Page 25 - O Que Faz o Brasil Brasil
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Mas aqui, no negro do asfalto, no calor da caminhada para se chegar

                  a  algum lugar, no nervosismo do confronto com o policial imbuído
                  de sua autoridade legal, que nos trata como coisas e como

                  indivíduos sem nome nem face, o reino é sinônimo de luta e sangue.

                  Na rua não há, teoricamente, nem amor, nem consideração, nem

                  respeito, nem amizade.  È  local  perigoso, conforme atesta o ritual
                  aflitivo e complexo que realizamos quando um filho nosso sai sozinho,

                  pela primeira vez, para ir ao  cinema, ao baile ou à escola. Que

                  insegurança  nos  possui quando um pedaço de nosso sangue e de

                  nossa casa vai ao encontro desse oceano de maldade e insegurança
                  que é a rua brasileira. Não é, pois, ao léu que damos conselhos

                  quando alguém se aventura nesta selva. Lá, falamos sempre, e nosso

                  próprio comportamento na rua acaba confirmando nossas piores e

                  mais sombrias profecias, estamos no reino do engano, da confusão e

                  do logro. Local onde ninguém nos respeita  como  “gente”  ou
                  “pessoa”, como entidade moral dotada de rosto e vontade. A rua

                  compensa a  casa  e  a  casa  equilibra a rua. No Brasil, casa e rua são

                  como os dois lados de uma mesma  moeda.  O  que  se  perde  de  um
                  lado, ganha-se do outro O que é negado em casa — como o sexo e o

                  trabalho —, tem-se na rua. Não creio ser necessário chamar a atenção

                  para o fato significativo de que, em nossa classificação de eventos,

                  relações e pessoas, a casa e a rua entram como um eixo dos mais

                  fundamentais. Assim, se a mulher é da rua, ela deve ser vista e tratada
                  de um modo. Trata-se, para ser mais preciso, das chamadas mulheres

                  da “vida”, pois rua e vida formam uma equação importante no nosso

                  sistema de valores. Do mesmo modo, se a discussão foi na rua, então

                  é quase certo que pode degenerar em conflito. Em casa, pode
                  promover um alto entendimento. Também falamos que comida de

                  rua é ruim ou venenosa, enquanto a comida caseira é boa (ou deve

                  ser assim) por definição. Até mesmo objetos e pessoas, como crianças,

                  podem ser diferentemente interpretados caso sejam da  rua  ou  de
                  casa.
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