Page 26 - O Que Faz o Brasil Brasil
P. 26

Por tudo isso, o universo da rua — tal como ocorre com o

                  mundo da casa — é mais que um espaço físico demarcado e
                  universalmente reconhecido. Pois para nós, brasileiros, a rua forma

                  uma espécie de perspectiva pela qual o mundo pode ser lido e

                  interpretado. Uma perspectiva, repito, oposta — mas complementar

                  — à da casa, e onde predominam a desconfiança e a insegurança.
                  Aqui, quem governa não é mais o pai, o irmão, o marido, a mulher e

                  as redes de parentesco e amizade que nos têm como uma pessoa e

                  um  amigo.  Ao  contrário, o comando é dado à autoridade que

                  governa com a lei, a qual torna todo mundo igual no propósito de
                  desautorizar e até mesmo explorar de forma impiedosa. Todos

                  sabemos, por experiência respeitável e profunda, que na rua não se

                  deve brincar com quem representa a ordem, pois naquele espaço se

                  corre o grave risco de ser confundido com quem é “ninguém”.  E

                  entre ser alguém e ser ninguém há um mundo no caso brasileiro. Um
                  universo ou abismo que passa pela  construção do espaço da casa,

                  com seu aconchego e sua rede imperativa de relações calorosas, e o

                  espaço da rua, com seu anonimato e sua insegurança, suas leis e sua
                  polícia. Daí por que, na rua, tendemos a ser todos  revolucionários e

                  revoltados, membros destituídos de uma massa de anônimos

                  trabalhadores.

                         Mas, além disso tudo, a rua é espaço que permite a mediação

                  pelo trabalho — o famoso “batente”, nome já indicativo  de  um
                  obstáculo que temos que cruzar, ultrapassar ou tropeçar. Trabalho

                  que no nosso sistema é concebido como castigo. E o nome diz tudo,

                  pois a palavra deriva do latim tripaliare, que significa castigar com o

                  tripaliu, instrumento que, na Roma Antiga, era um objeto de tortura,

                  consistindo  numa  espécie de canga usada para supliciar escravos.
                  Entre a casa (onde não deve  haver trabalho e, curiosa e

                  erroneamente,  não  tomamos o trabalho doméstico como tal, mas

                  como “serviço” ou até mesmo prazer ou favor...) e a rua, o trabalho
   21   22   23   24   25   26   27   28   29   30   31