Page 67 - O Que Faz o Brasil Brasil
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desempenho, tudo isso é fora do comum.  Basta  observar  que  nós,

                  brasileiros, somos um povo marcado  e  dividido  pelas  ordens
                  tradicionais: o nome de família, o título de doutor, a cor da pele, o

                  bairro onde moramos, o nome do padrinho, as relações pessoais, o

                  ser amigo do Rei, Chefe Político ou Presidente. Tudo isso nos classifica

                  socialmente de modo irremediável. Jamais utilizamos o concurso
                  público e a competição como algo normal entre nós, daí o trabalho

                  que é fazer uma eleição honesta e disputada. Ela implica, inclusive,

                  algo que evitamos: dar opiniões e disputar vontades,  revelando

                  abertamente as nossas mais legítimas (e ocultas)  diferenciações
                  sociais. Mas que coisa milagrosa! Agora,  em  plena  festa

                  carnavalesca, podemos finalmente nos abrir para as nossas aspirações

                  e associações, revelando legitimamente os nossos desejos e vontades.

                  É o que faz esse concurso  de escolas de samba que, sabemos, só

                  pode ser ganho no pé. Na base do desempenho, do  élan  e da
                  vontade  de  vencer. Aqui, os apadrinhamentos são policiados e o

                  povo  age como jamais pode realmente operar: como  juiz supremo

                  que conhece as regras  do jogo e as aplica  com gana e justiça.
                  Carnaval, pois, é inversão porque é competição numa sociedade

                  marcada pela hierarquia. É movimento numa sociedade  que  tem

                  horror à mobilidade, sobretudo à  mobilidade que permite trocar

                  efetivamente de posição social. É exibição numa ordem social

                  marcada pelo falso recato de “quem conhece o seu lugar” — algo
                  sempre usado para o mais forte controlar o mais fraco em todas as

                  situações. É feminino num universo social e cosmológico marcado

                  pelos homens, que controlam tudo o que é externo e jurídico, como

                  os negócios, a religião oficial e a política. Por tudo isso, o carnaval é a
                  possibilidade utópica de mudar de  lugar, de trocar de posição na

                  estrutura social. De realmente inverter o mundo em direção à alegria,

                  à abundância, à liberdade e, sobretudo, à igualdade de  todos

                  perante a sociedade. Pena que tudo  isso só sirva para revelar o seu
                  justo e exato oposto...
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