Page 71 - O Que Faz o Brasil Brasil
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embora deva saber reconhecer. Desse modo, o espaço religioso
demarca uma área onde é possível encontrar o rico e o pobre, o
poderoso e o fraco, o sadio e o aleijado, o homem e a mulher, o
adulto e a criança, o santo e o pecador, o crente fervoroso e o
freqüentador esporádico e distante.
O patrocínio ou patronagem dos santos e deuses cria essas
regiões neutras, mas hierarquicamente ordenadas, onde existe uma
espécie de carnaval devoto ou terra de ninguém, já que todos
podem encontrar-se com todos dentro desse espaço. Mas é preciso
acentuar que essa carnavalização (ou troca de lugar) nada tem a ver
com excessos ou com a possibilidade de virar o mundo de cabeça
para baixo. Ao contrário, nos ritos da ordem em geral, e nos rituais
religiosos em particular, o comportamento é marcado pela contrição
e pela solenidade que se concretizam nas contenções corporais e
verbais. O corpo, então, na Igreja e nas solenidades da ordem é
marcado pela rigidez dos gestos e por formas obrigatórias de
gesticulação. São maneiras de marcar a contenção e de promover a
uniformidade e a tranqüila obediência dos fiéis ou servidores, já que
tudo isso conduz a uma visão ordenada da própria ocasião formal.
Também é possível que tais formas de ritualização pretendam
assegurar o respeito a qualquer preço, pois a contenção do corpo
significa, de certo modo, a liberdade do espírito, que pode ou não
estar presente com a mesma convicção na solenidade. Assim, eu
posso estar ajoelhado numa igreja, mas ter meu espírito, muito longe
dali, o que no caso de um ritual orgiástico é impossível, dada a
solicitação em que o corpo e o espírito estão implicados. De fato,
num almoço com os amigos ou num baile de carnaval, não posso
deixar de me envolver. A festa carnavalesca requer tudo de mim:
meu corpo e minha alma, minha vontade e minha energia. Mas as
festas da ordem parecem dispensar essa motivação totalizada. Daí,
talvez, essas regras rígidas de contenção corporal, verbal e gestual
nos ritos da ordem.