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objetivo é abolir todas as diferenças, ou pelo menos foi assim que viu

                  Bakhtin nas sociedades hierarquizadas. Mas no caso das festas da
                  ordem, ou seja, das formalidades  sociais em que se celebram  as

                  relações sociais tal como elas operam no mundo diário, as diferenças

                  são mantidas. Aqui, ao contrário do carnaval, o que se está

                  celebrando é a própria ordem social, com suas diferenças e
                  gradações, seus poderes e hierarquias. Não se deseja virar o mundo

                  de pernas para o ar, colocando-o de cabeça para baixo, mas o que

                  se  pretende  é  precisamente  celebrar o mundo tal como ele é no

                  quotidiano. Daí por que, em outro lugar (no meu livro  Carnavais,
                  malandros e heróis), chamei os carnavais de “ritos de inversão” e os

                  festivais da ordem de “ritos de reforço”. Minha idéia era salientar essas

                  propriedades estruturais de um e outro momento solene: o carnaval

                  promovendo a igualdade e a supressão de fronteiras, e as  festas

                  cívicas e religiosas promovendo a sua glorificação e manutenção.
                         Desse modo, os rituais religiosos partem de igrejas e locais

                  sagrados, pretendendo ordenar o mundo de acordo com os valores

                  que são ali articulados como os mais básicos. O mundo  de Deus  —

                  representado pela Igreja Católica e pelas formas de religiosidade que
                  a ela se referem — é um universo onde as coisas se ordenam de modo

                  plenamente vertical. De cima para baixo e de baixo para cima. Com

                  Deus, a  Virgem Maria, os santos, os  anjos, os mártires, os beatos, os

                  sacerdotes e os fiéis formando uma cadeia: do altar-mor, onde essa
                  verticalidade está instituída, até o adro da igreja, onde as pessoas se

                  espalham, misturando o profano com o sagrado. Aqui, a ordem é

                  paradoxalmente salientada e ao mesmo tempo negada, pois —

                  conforme sabemos — a Igreja declara explicitamente  que  seu  reino
                  não é deste mundo, mas do outro. E  Deus,  os  santos  e  a  Virgem

                  podem  interceder  e  agraciar  com sua ajuda qualquer pessoa. Eles

                  são patrocinados pelas igrejas, mas a Igreja (ou igrejas) não os possui

                  nem pode controlar  suas  ações. Ela pode  interpretá-los, mas suas
                  vozes têm códigos próprios que a  própria Igreja pode desconhecer,
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