Page 46 - Revista PSIQUE Ciência e Vida
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Dossiê
“À medida que nossos progressos técnicos
multiplicaram os objetos em torno de nós,
sentimos nosso mundo interno empobrecer, e
finalmente a nova geração, à qual oferecemos em
seu berço nossos tesouros de engenhosidade,
gritou-vos violentamente: ‘Não é disso que
precisamos! Queremos viver, queremos que nossa
vida tenha sentido’” (Perrot, 1998, p.19).
Rompendo a rigidez do “certo ou errado”
ou dos julgamentos de que “no meu tempo
era assim”, o ânimo dessa nova sabedoria
multitasking pode também personificar
um domínio em que toma forma o uso
responsável das redes sociais e de toda gama de
possibilidades dos recursos tecnológicos. Um
apelo sincero para deslocar a energia vital e a
jornada individual de cada um do mundo externo
e seu afã padronizador para o mundo interno da
originalidade e à amplificação da consciência e
imaginação. A superação do ego cristalizado e
autocentrado em suas convicções irredutíveis
para o encontro vigoroso com o self, o arquétipo
da totalidade psíquica e fonte da experiência
originaria do viver, poderia ser considerada, PARA SABER MAIS
através das redes sociais, uma forma medial de
estabelecer relações criativas e dinâmicas. O FIM DAS UTOPIAS
Hoje, não é mais possível se relacionar sem
algum tipo de interatividade virtual. Desde a E A “SOCIEDADE LÍQUIDA”
forma com que se procura a pronuncia de uma
palavra sueca até a expectativa de um encontro
amoroso, tudo tem lugar na rede, na civilização O conceito de “sociedade líquida” foi criado pelo sociólogo
da virtualização dos afetos. e filosofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). Segundo o
Se existe algo que mudou muito em tão pensador, a sociedade líquida não consegue traduzir seus
pouco tempo certamente foi o telefone. desejos em um projeto de longa duração e de trabalho duro
Mudamos as formas de nos relacionar
com o telefone e a partir dele. Nessa hibridez e intenso para a humanidade. Para ele, os maiores projetos
comportamental pedimos comida pelo telefone de novas sociedade se perderam e a sociedade não é ais
com a mesma rapidez com que é possível voltada para atingir um objetivo. A utopia, que tinha um
“fazer amizades” papel fundamental, pois era maneira de perceber que a
Das grandes cabines, operadas por telefonistas, realidade do momento precisava ser alterada, se perdeu.
aos pequenos e cada vez mais velozes
smartphones, esse aparelho pode ser considerado Até o século XX, havia a constatação de que o mundo
um dos mais importantes regentes socioculturais precisava ser mudado e interações sociais suficientes para
na atualidade. Das inevitáveis tocas simbólicas, criar grupos, para isso. Ainda de acordo com o sociólogo,
ressonâncias e renovações advindas dos celulares o fim das utopias é a perda do caráter reflexivo em relação
conectados à rede não seria exagero dizer que à sociedade e, por consequência, a perda da noção de
nos tornamos sujeitos on-line, capturados pelas
exigências do tempo instantâneo e midiático, do progresso como um bem que dever ser partilhado. A busca
database e do gerenciamento das redes sociais, do prazer individual é o objetivo da sociedade líquida
que tendem a regular a orgia dos desejos em
valores cada vez mais idealizados.
Março 2019 - Ano 12 PSIǪUE