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Dossiê


            “À medida que nossos progressos técnicos
          multiplicaram os objetos em torno de nós,
          sentimos nosso mundo interno empobrecer, e
          finalmente a nova geração, à qual oferecemos em
          seu berço nossos tesouros de engenhosidade,
          gritou-vos violentamente: ‘Não é disso que
          precisamos! Queremos viver, queremos que nossa
          vida tenha sentido’” (Perrot, 1998, p.19).
            Rompendo a rigidez do “certo ou errado”
          ou dos julgamentos de que “no meu tempo
          era assim”, o ânimo dessa nova sabedoria
          multitasking pode também personificar
          um domínio em que toma forma o uso
          responsável das redes sociais e de toda gama de
          possibilidades dos recursos tecnológicos. Um
          apelo sincero para deslocar a energia vital e a
          jornada individual de cada um do mundo externo
          e seu afã padronizador para o mundo interno da
          originalidade e à amplificação da consciência e
          imaginação. A superação do ego cristalizado e
          autocentrado em suas convicções irredutíveis
          para o encontro vigoroso com o self, o arquétipo
          da totalidade psíquica e fonte da experiência
          originaria do viver, poderia ser considerada,   PARA SABER MAIS
          através das redes sociais, uma forma medial de
          estabelecer relações criativas e dinâmicas.  O FIM DAS UTOPIAS
            Hoje, não é mais possível se relacionar sem
          algum tipo de interatividade virtual. Desde a   E A “SOCIEDADE LÍQUIDA”
          forma com que se procura a pronuncia de uma
          palavra sueca até a expectativa de um encontro
          amoroso, tudo tem lugar na rede, na civilização   O conceito de “sociedade líquida” foi criado pelo sociólogo
          da virtualização dos afetos.              e filosofo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017). Segundo o
            Se existe algo que mudou muito em tão   pensador, a sociedade líquida não consegue traduzir seus
          pouco tempo certamente foi o telefone.    desejos em um projeto de longa duração e de trabalho duro
            Mudamos as formas de nos relacionar
          com o telefone e a partir dele. Nessa hibridez   e intenso para a humanidade. Para ele, os maiores projetos
          comportamental pedimos comida pelo telefone   de novas sociedade se perderam e a sociedade não é ais
          com a mesma rapidez com que é possível    voltada para atingir um objetivo. A utopia, que tinha um
          “fazer amizades”                          papel fundamental, pois era maneira de perceber que a
            Das grandes cabines, operadas por telefonistas,   realidade do momento precisava ser alterada, se perdeu.
          aos pequenos e cada vez mais velozes
          smartphones, esse aparelho pode ser considerado   Até o século XX, havia a constatação de que o mundo
          um dos mais importantes regentes socioculturais   precisava ser mudado e interações sociais suficientes para
          na atualidade. Das inevitáveis tocas simbólicas,   criar grupos, para isso. Ainda de acordo com o sociólogo,
          ressonâncias e renovações advindas dos celulares   o fim das utopias é a perda do caráter reflexivo em relação
          conectados à rede não seria exagero dizer que   à sociedade e, por consequência, a perda da noção de
          nos tornamos sujeitos on-line, capturados pelas
          exigências do tempo instantâneo e midiático, do   progresso como um bem que dever ser partilhado. A busca
          database e do gerenciamento das redes sociais,   do prazer individual é o objetivo da sociedade líquida
          que tendem a regular a orgia dos desejos em
          valores cada vez mais idealizados.
















          Março 2019 - Ano 12                                                                        PSIǪUE
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